Vencendo a COVID-19 com vacinas: entrevista com Paul Offit

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15 fev 2021
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paul offit

 

Paul Offit é um pediatra americano, especializado em vacinação, imunologia e virologia. Ele é diretor do Centro de Educação de Vacinas do Hospital Infantil da Filadélfia. É coinventor da RotaTeq, uma vacina do rotavírus amplamente utilizada nos Estados Unidos.

Como um dos membros do Comitê Consultivo de Vacinas da FDA (agência regulatória americana), Offit está analisando de perto os dados de ensaios clínicos de vacinas da COVID-19 e outros estudos.  Além de várias publicações científicas, Offit é autor de muitos livros escritos para o público em geral. Seu último livro, ainda sem edição no Brasil, é “Overkill – when modern medicine goes too far” (em tradução livre, "Força Excessiva: quando a medicina moderna vai longe demais".

Nesta entrevista, falamos principalmente sobre os dados das vacinas COVID-19.

 

 

Nogueira: O que você pode dizer sobre os comunicados de imprensa da Johnson & Johnson e Novavax, publicados recentemente?

Offit: Quando considerarmos essas vacinas no comitê consultivo da FDA, esperamos que em breve, teremos todos os dados[i]. Por enquanto, estamos apenas olhando para dados superficiais apresentados pelas empresas farmacêuticas nestes comunicados de imprensa.

O estudo da vacina da Johnson & Johnson analisou a prevenção de casos moderados a graves de COVID-19. São esses casos que causam hospitalizações e mortes. A eficácia da vacina foi: 72% nos EUA, 66% na América Latina e 57% na África do Sul. Além disso, a vacina foi muito eficaz na prevenção da doença severa; houve 40 a 60 internações e óbitos – todos no grupo placebo, inclusive na África do Sul. A variante sul-africana parece ter causado mais doenças em pessoas vacinadas do que outras variantes. Em outras palavras, a variante sul-africana parece ter escapado parcialmente da imunidade induzida pela vacina. Mas a vacina J&J ainda preveniu doença grave e fatal.

Em contrapartida, o estudo de vacinas da Novavax analisou a prevenção de todos os casos sintomáticos de COVID-19 – leves, moderados e graves. A vacina foi 89% eficaz no Reino Unido, mas apenas 60% em dois pequenos estudos de Fase 2B com 4.000 pessoas na África do Sul. No entanto, ainda não sabemos se a vacina Novavax previne doenças graves, internações e óbitos. 

 

Nogueira: O que você acha da eficácia reduzida da vacina contra a variante sul-africana?

Offit:  Eu ficaria mais desanimado se as variantes sul-africana ou brasileira fossem completamente resistentes à imunidade induzida pela vacina em todos os níveis da doença. Isso seria deprimente, porque precisaríamos fazer outra vacina. Estou animado que a vacina protege contra doença severa, que é o objetivo. Você quer manter as pessoas fora do hospital e vivas.

 

Nogueira: Se esse é o objetivo, o desfecho primário desses estudos clínicos de Fase 3 não deveria ter sido doença moderada a grave (em vez de todos os casos sintomáticos de COVID-19, independentemente da gravidade)? 

Offit: Sim. Seria muito mais fácil fazer as pessoas entenderem qual é o objetivo com as vacinas. O objetivo é evitar que as pessoas sejam hospitalizadas. Trabalhei na vacina do rotavírus por 26 anos. Essa vacina é muito boa na prevenção de doença moderada a grave, mas não tão boa na prevenção de casos leves ou até mesmo assintomáticos. Nos EUA, passamos de 75.000 internações e 60 mortes anualmente para um número muito pequeno de crianças que estão hospitalizadas devido ao rotavírus.

 

Nogueira: Você acha que comunicados de imprensa sem o artigo científico podem minar a confiança do público nos resultados?

Offit: Eu não acho que o público vê a diferença entre comunicados de imprensa e publicação científica. Isso só torna a situação muito difícil para aqueles que tentam comunicar os resultados com confiança. Por exemplo, a CNN me perguntou o que eu penso sobre os dados da J&J, mas ainda não temos dados.

 

Nogueira: Que comentários você pode fazer sobre o ensaio da vacina da AstraZeneca/Oxford?

Offit: Foi uma bagunça. Eles usaram meia dose seguida de uma dose completa em um país. Em outro país, eles usaram dose completa seguida de dose completa. O intervalo entre as doses também foi diferente. Em um país, utilizaram um mês entre as doses, mas três meses em outro país. Além disso, havia diferentes controles – controle salino ou vacina meningocócica. Fizeram uma média de tudo isso, obtendo eficácia de70% na prevenção da doença. No entanto, você não pode fazer a média de doses e intervalos de doses diferentes em uma única estratégia.

A FDA não vai olhar para esses dados para decidir dar ou não autorização de uso emergencial para essa vacina. Analisaremos os dados do estudo dos EUA, que é consistente: apenas um regime de dose, um intervalo de dose e um placebo. 

A questão é que essa vacina baseada no adenovírus símio defeituoso para replicação talvez seja excelente. Mas com essas discrepâncias no estudo da AstraZeneca, ainda não sabemos. Como esses estudos não foram feitos de forma persuasiva e mostram um certo nível de descaso, no meio de uma pandemia com milhares de pessoas morrendo todos os dias, gostaríamos de ter dados melhores. 

 

Nogueira: Qual a importância da segunda dose para a vacina mRNA?

Offit: Nos Estados Unidos, estamos atrasando a segunda dose das vacinas da Pfizer e da Moderna. A ideia é dar a primeira dose para o maior número possível de pessoas. Mas isso vai contra a ciência. A ciência mostrou que é uma vacina de duas doses. Os estudos da Pfizer e da Moderna mostraram que a segunda dose induziu anticorpos neutralizantes muito mais elevados e induziu células T auxiliares e células T citotóxicas. Isso não foi visto apenas com a primeira dose, então sugere memória de longo prazo após a segunda dose.

 

Nogueira: Já sabemos o nível de correlato imunológico de proteção para COVID-19?

Offit: Metade das vacinas que estão sendo usadas nos EUA não tem correlato imunológico claro de proteção [“correlato imunológico de proteção” é um indicador que pode ser verificado num exame laboratorial e que permite determinar se a pessoa vacinada está protegida contra a doença[ii]]. Trabalhei na vacina contra rotavírus por 26 anos. Fizemos um teste de fase 3 controlado por placebo com 70.000 crianças. A vacina foi 94% eficaz na prevenção de doença moderada a grave. Coletamos amostras de soro de crianças vacinadas que tiveram doença e de crianças vacinadas que não adoeceram. Mesmo com muitos casos em crianças vacinadas, não encontramos um correlato imunológico – pelo menos não um correlato sérico. Como o rotavírus é uma infecção intestinal, em teoria poderíamos fazer biópsias do intestino das crianças para ver a frequência das células B e T de memória no intestino, mas obviamente não fizemos isso.

Para a COVID-19, houve apenas 19 casos em pessoas vacinadas, somando os estudos da Pfizer e da Moderna. Como consequência, as empresas farmacêuticas não responderam à pergunta da FDA sobre qual é a correlato de proteção. Faz sentido pensar que anticorpos neutralizantes – anticorpos que impedem o vírus de se ligar nas células e invadi-las – sejam um correlato imunológico, mas nós normalmente não olhamos para células auxiliares T ou células T citotóxicas, que também podem ser correlatos. Todas essas três respostas são necessárias para a resolução da infecção. Mas o que é necessário para prevenir a infecção pode ser diferente do necessário para resolver a infecção.

 

Nogueira: Por que diferentes empresas recomendam intervalos diferentes entre a primeira e a segunda dose? 

Offit: A vacina da AstraZeneca é de vetor viral que utiliza o mesmo vetor (adenovírus símio deficiente para replicação) na primeira e na segunda dose. Nesse caso, as pessoas vacinadas desenvolvem uma resposta imune ao vetor, diminuindo a capacidade do vetor de entrar nas células e fazer proteína S do SARS-CoV-2. Também faz sentido dar uma dose curta pela primeira vez para não induzir uma grande resposta ao vetor e pôr a segunda dose três ou quatro meses depois, de modo que a resposta contra o vetor teve tempo suficiente para diminuir.

Penso que é por isso que a Sputnik usa um vetor na primeira dose e outro vetor na segunda dose (adenovírus humano deficiente para replicação tipo 5 e tipo 26). Esses vetores são imunologicamente distintos. No entanto, esse argumento não se aplica às vacinas mRNA. A Pfizer escolheu três semanas e a Moderna escolheu quatro semanas entre as doses, mas provavelmente o tempo de intervalo poderia ser trocado entre elas. 

 

Nogueira: Você acha que mulheres grávidas devem ser vacinadas?

Offit: Prestaríamos um melhor serviço para as gestantes se elas fossem incluídas nesses ensaios da fase 3. Mulheres grávidas geralmente nunca são incluídas em ensaios de fase 3 de vacinas. Como consequência, o CDC geralmente contraindica vacinas para elas, porque não há dados.

Para a COVID-19, no entanto, o CDC não fez isso, mesmo não tendo muitos dados. No estudo da Pfizer, havia 23 mulheres grávidas e 13 no estudo da Moderna. Elas foram randomizadas para obter a vacina ou o placebo. Então, cerca de 20 mulheres receberam a vacina e não tiveram problemas. Houve dois casos de abortos espontâneos, mas, curiosamente, ambas as mulheres estavam no grupo placebo.  Também sabemos que mulheres grávidas com COVID-19 são mais propensas a ter caso grave do que mulheres não grávidas da mesma idade. Então, o CDC diz que as mulheres podem fazer uma escolha racional de se vacinarem ou não.

 

Nogueira: Que comentários você pode fazer sobre o risco de paralisia de Bell que foram relatados em ensaios clínicos?

Offit: Ocorreram três e quatro casos de paralisia de Bell nos estudos da Pfizer e da Moderna, respectivamente. Esses sete casos ocorreram no grupo vacinal, enquanto apenas um, no grupo placebo. Esse número no grupo vacinal foi maior do que o esperado para uma população em geral. No entanto, nesta semana, o CDC apresentou dados sobre a segurança das vacinas.  A taxa de paralisia de Bell em pessoas vacinadas é a mesma da esperada da população em geral.

Quando você faz um estudo em milhares de pessoas e olha para muitas coisas, aparecem algumas associações estatísticas espúrias. Isso ocorreu com o nossa vacina do rotavírus no estudo de fase 3 que fizemos com 700 mil crianças: Ocorreram cinco casos da Doença de Kawasaki no grupo vacinal, mas nenhum caso no grupo placebo. Houve também nove casos de convulsões no grupo vacinal e apenas dois no grupo controle. Essas associações desapareceram quando milhões de crianças foram vacinadas. Curiosamente, houve cinco casos de fraturas de braços e pernas no grupo placebo, mas nenhum no grupo vacinal. Se nos basearmos em todas as associações estatísticas, poderíamos ter dito que fizemos uma vacina que previne fraturas nos braços e pernas. 

 

Nogueira: E o caso da mielite transversa (inflamação na medula) no estudo da AstraZeneca?

Offit: Além da mielite transversa, houve um caso de "esclerose múltipla não diagnosticada". Ambas são baseadas em respostas de células T e B à proteína à base de mielina – uma patogênese semelhante. Se essa vacina receber aprovação nos EUA, certamente monitoraremos todas essas condições.

A questão aqui é: a única maneira de alcançarmos imunidade de rebanho ou eliminar essa pandemia é através da vacinação. Então, se descobrirmos que alguma vacina COVID-19 causa um raro defeito neurológico permanente grave, acho que muitas pessoas considerariam usar máscara e manter distanciamento social até que esta pandemia termine, mas teríamos perdido uma ferramenta poderosa para acabar com isso.   

 

Nogueira: A ideia de uma possível agravação da COVID-19 por uma vacina foi descartada, pelo menos por enquanto?

Offit: Sim, por muitas razões. Em primeiro lugar, em modelos animais experimentais em SARS-CoV-1, ocorreu o chamado antibody dependent enhancement (ADE), onde os vacinados tiveram maior risco de doença severa do que os não vacinados. No entanto, não vimos ADE nos modelos animais para SARS-CoV-2, o que significa que o animal foi infectado duas vezes sem evidência de doença agravada. Além disso, nos modelos experimentais, plasma convalescente e vacinas não causaram doenças agravada. Então, ADE não será a história para esta vacina. 

 

 

Nogueira: Podemos saber se as novas variantes são mais contagiosas ou se as pessoas estão se comportando de forma mais arriscada, aumentando o nível de contágio?

Offit: Para mostrar que algo é mais contagioso, você pode fazer um rastreamento de contato e mostrar que uma pessoa infectada com uma cepa é mais propensa a infectar pessoas do que se ele estiver infectado com outra variante. Esses estudos nunca foram feitos. Isso também vale para virulência. Se algo é mais contagioso, é mais provável que uma pessoa adoeça e morra. Eu não acho que tenha sido mostrado que pessoas hospitalizadas com uma determinada variante têm mais chance de morrer do que as pessoas internadas com outras variantes 

O que me preocupa é o escape da imunidade induzida pela vacina. Saberemos se isso está acontecendo quando pessoas vacinadas forem hospitalizadas com uma nova variante. Então, essa será uma cepa que escapou da imunidade induzida pela vacina, mas isso não aconteceu ainda. 

 

Nogueira: Qual é a relação entre o tempo de incubação e a resposta imune?

Offit: O período de incubação de SARS-CoV-2 é de cerca de seis dias – o tempo desde a exposição ao vírus até o momento em que você desenvolve sintomas. É um longo período de incubação. Por exemplo, a incubação do rotavírus é de alguns dias e o da gripe é de 18 horas. Nesses casos, não há muito tempo para que as células B de memória se tornem células plasmáticas e secretem anticorpos. Nos surtos de sarampo entre 1988 e 1991, havia crianças sem anticorpos neutralizantes que estavam protegidas; elas tinham memória imunológica. Assim, a memória celular pode ser boa o suficiente para evitar que as pessoas adoeçam com a COVID-19.

 

Nogueira: Discutindo um tema que você abordou em seu último livro “Overkill”, por que está errado tomarmos antitérmicos quando temos febre?

 Offit: Todos os aspectos da nossa resposta imune funcionam melhor em temperaturas mais altas; é por isso que fazemos febre. Pagamos um preço metabólico – aumentamos nossa taxa metabólica em cerca de 12% para cada grau centigrado de febre. Não é prazeroso ter febre – podemos sentir dor de cabeça, dor nas articulações e calafrios durante a febre. Fazemos febre quando precisamos, por exemplo, quando estamos infectados. Estudos avaliam se tomar medicamentos antitérmicos prolonga ou não a infecção. A resposta é sim, e falo sobre isso no primeiro capítulo do meu novo livro.

Relacionados às vacinas, dois estudos foram realizados. Um estudo na República Checa analisou várias vacinas pediátricas. Outro estudo, na Austrália, analisou apenas a vacina da gripe. O que descobriram é que se você tomar antipiréticos antes da vacina, a resposta imune é reduzida. E se tivermos com a febre após uma vacina e resolvermos tratar com antitérmicos (em vez de pré-tratar)? Não há dados para isso, mas eu diria para viver com a febre por alguns dias.

 

Felipe Nogueira é Doutor em Ciências Médicas pela UERJ, além Mestre e Bacharel em informática pela PUC-Rio. Divulgador da ciência e do pensamento crítico com artigos publicados nas revistas Skeptical Inquirer, Skeptic, Questão de Ciência e no seu blog Ceticismo e Ciência

 

NOTAS

 

[i] Os membros do Comitê Consultivo da FDA vão se reunir no dia 26 de fevereiro para votarem na aprovação da vacina da Johnson & Johnson para uso emergencial. 

[ii] correlato imunológico de proteção é um marcador que está correlacionado à proteção contra doença. O objetivo é identificar um marcador que diferencia as pessoas que estão protegidas das que não estão. Os marcadores mais frequentemente utilizados são anticorpos neutralizantes.

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