Comparando eficácia de vacinas: é complicado

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15 jan 2021
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A intensidade da atenção pública dirigida aos resultados dos testes de Fase 3 das vacinas para COVID-19 – testes que buscam medir a capacidade de cada imunizante de evitar que pessoas adoeçam – começa a trazer à tona uma questão que em outros tempos poderia ser vista como acadêmica, quase filosófica, mas que no contexto da pandemia atual e da agitação conspiracionista antivacinas, ganha contornos dramáticos: o que, final, conta como “adoecer”?

Se cada teste de vacina tem um critério diferente para dizer quem pegou ou não pegou COVID-19, então os números de eficácia não são comparáveis: seria como tentar escolher o homem mais forte do mundo dando uma prova diferente para cada candidato. Mesmo se todas as provas forem relativas à força (levantamento de peso, arremesso de rochas, etc.), e permitirem concluir que os candidatos são mesmo homens muito fortes, a comparação direta entre eles torna-se bem difícil, se não impossível.

O temor de sofrer comparações injustas com outras vacinas, por causa dessa variação de critérios, levou o Instituto Butantan de São Paulo a cometer o erro de, inicialmente, não divulgar a eficácia geral do imunizante desenvolvido em parceria com a chinesa Sinovac, optando por destacar apenas a eficácia de 78% contra casos moderados, que requereram ajuda médica. A eficácia geral diz respeito a todos os casos – incluindo os muito leves – e é aí que as comparações ficam complicadas.

Após perceber a repercussão negativa da falta de transparência nos dados, e atendendo aos pedidos da comunidade científica e da sociedade, o Butantan chamou uma nova coletiva de imprensa, trazendo cientistas independentes – inclusive um de nós – para comunicar resultados completos.

 

Números

A eficácia total da Coronavac, incluindo todos os casos de COVID-19, de muito leves a graves, ficou em 50,4%. O valor de 78% para prevenção de agravamento foi novamente comunicado, desta vez com mais detalhes que permitem atestar a robustez deste dado, possivelmente o mais importante.

Não houve casos graves no grupo vacinado, uma tendência que também aparece em outras vacinas como Pfizer, Moderna e AstraZeneca. Isso indica que as tecnologias utilizadas, mesmo sendo diferentes entre si, conseguem todas prevenir doença grave. É um dado que precisa ser confirmado: como houve poucos casos graves observados em todos os testes clínicos, é impossível ter poder estatístico para afirmar com certeza esse poder protetor extra, mas os resultados disponíveis apontam uma tendência que traz esperança.

A Coronavac mostra, portanto, o potencial de reduzir pela metade o número de casos leves da doença, e de reduzir a um quinto o número de casos que precisam de atendimento médico. É uma boa vacina, que certamente irá impactar, em muito, os índices de hospitalização e morte, liberando leitos de hospital, e mudando o aspecto da doença. Após ampla vacinação, a Coronavac pode transformar a COVID-19 em uma doença mais leve, que poderá ser tratada em casa na maioria dos casos. Esse resultado sempre foi o objetivo de todas as vacinas.

 

Doença

No entanto, assim que o Butantan divulgou a eficácia, surgiram inevitavelmente as comparações com outras vacinas, principalmente as de mRNA, que apresentam níveis de proteção geral mais elevados. É uma comparação justa? Vejamos. Os testes clínicos foram desenhados para medir a capacidade de uma vacina de proteger contra doença. Para isso, contaram-se números de casos sintomáticos de COVID-19.

Mas o que, afinal, define um caso? Não é pegar o vírus, porque muitos portadores são assintomáticos. Não é tossir, espirrar e ter febre, porque essas coisas podem ser causadas por gripes, resfriados ou até mesmo crises alérgicas. Falta de ar? Pode ser asma ou alergia. O diagnóstico ideal envolve, portanto, um conjunto de sintomas mais a presença do vírus, mas o teste para detectar SARS-CoV-2 tem lá suas margens de erro, é escasso e só funciona bem se feito numa janela de tempo muito específica.

É por causa desse espaço amplo para confusão que as diretrizes para isolamento social pedem que as pessoas com suspeita de COVID-19, ou que tiveram contato com um caso suspeito, se recolham por dez dias, independentemente de qualquer resultado de teste ou de conjunto de sintomas. A incerteza milita a favor do vírus: se houvesse alguma forma rápida e certeira de identificar casos, o isolamento poderia atingir muito menos gente e seria bem mais simples de implementar.

A mesma incerteza também produz a ilusão de “sucesso” dos infinitos protocolos de atendimento precoce: como os estágios iniciais da doença se confundem muito facilmente com outros problemas de saúde, muita gente está tomando “kit covid” para resfriados e corizas que iam sumir sozinhos de qualquer modo.

 

Critérios

Relatório apresentado à FDA, órgão do governo dos Estados Unidos que regulamenta o uso de medicamentos, mostra que no teste da vacina da Pfizer, que publicou uma taxa de eficácia oficial de 95%(com oito casos confirmados de COVID-19 no grupo de voluntários vacinado, ante 162 no grupo placebo), houve mais de três mil casos suspeitos da doença, divididos da seguinte forma: 1594 no grupo vacinado, 1816 no placebo. Dependendo do número de testes falsos negativos para o vírus entre os casos suspeitos – e, por mera questão de probabilidade, deve haver vários – a eficácia real pode ser menor do que a publicada.

O que não é exatamente um problema: a vacina foi aprovada para uso nos Estados Unidos e em outras partes do mundo.

Dados a escassez e os custos dos exames para identificação do vírus, os testes de vacinas tiveram de definir critérios para decidir quais voluntários seriam considerados casos suspeitos de COVID-19 – e, portanto, encaminhados para realizar o exame laboratorial que confirma a presença do SARS-CoV-2. Há uma grande sobreposição de critérios entre as diferentes vacinas, como seria de se esperar, mas é possível encontrar pequenas variações que podem afetar os números de cada uma e tornar as comparações menos simples do que parecem.

Para a Pfizer, um caso “confirmado” de COVID-19 envolvia o aparecimento ou agravamento de pelo menos um dos seguintes sintomas – febre, tosse, falta de ar, calafrios, dores musculares, perda de olfato ou paladar, dor de garganta, diarreia, vômitos – seguido de um teste positivo para a presença do vírus. Um caso “suspeito” envolve sintomas, mas sem o teste positivo. Como esses sintomas clínicos iniciais de COVID-19 confundem-se facilmente com sintomas de outras condições, o grande número de eventos suspeitos, mas não confirmados, não surpreende.

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Para a Moderna, o critério de “caso suspeito” era mais complicado. A lista oficial diz: pelo menos dois dos seguintes sintomas – febre acima de 38oC, calafrios, dores musculares, dor de cabeça, dor de garganta, distúrbios do olfato ou do paladar; ou pelo menos um dos seguintes sintomas: tosse, falta de ar ou dificuldade respiratória; ou evidência clínica ou radiográfica de pneumonia. A confirmação se dava por meio de exame para a presença do vírus SARS-CoV-2.

Já para a Coronavac (a vacina do Butantan), os sintomas listados no protocolo eram febre ou calafrios, tosse, falta de ar ou dificuldade para respirar, fadiga, dores muscular ou do corpo, dor de cabeça, perda de olfato ou paladar, dor de garganta, congestão nasal ou coriza, náusea ou vômito, diarreia. A presença de pelo menos um desses sintomas configurava caso possível. Teste positivo para o vírus, caso confirmado.

Como, na peneira da Coronavac, passam mais casos – gente com dor de cabeça, náusea, coriza, por exemplo, sintomas ignorados na avaliação primária do teste da Pfizer –, uma proporção maior de voluntários acaba encaminhada para o teste de vírus, que confirma mais casos, puxando o número da eficácia geral para baixo, em comparação com protocolos mais restritivos. Isso porque as vacinas em geral apresentaram uma tendência de mostrar maior eficácia para casos mais graves, como se observou com os 78% da Coronavac para evitar casos que precisam de atendimento médico.

Também é importante notar que, à medida que a ciência aprende mais sobre a doença, a lista de sintomas muda. A Pfizer usou uma lista menor porque, quando seu estudo teve início, havia menos sintomas conhecidos da fase leve da doença.

É importante entender que uma vacina só é tão boa quanto sua campanha de vacinação. Precisamos de vacinas adequadas para nossa realidade, nossa capacidade de produção, nossa cadeia de frio para transporte, e que, portanto, sejam capazes de alcançar o maior número possível de pessoas, causando um impacto real na sociedade. A Coronavac cumpre todos esses requisitos, e tudo indica que a vacina de Oxford/AstraZeneca também, apesar de ter sofrido de confusão na apresentação dos resultados: sua eficácia real ainda segue indeterminada, mas deve encontrar-se na faixa de 60% a 90%.

 

Risco ou perigo

Por último, outro ponto relevante. Como se não bastasse todo o marketing negativo que a Coronavac tem sofrido, após a publicação dos resultados alguns grupos desafiaram o cálculo da eficácia, acusando o Butantan de ter maquiado números para alcançar a taxa mínima de 50% exigida pela Anvisa e por critérios internacionais para aprovação do uso emergencial. Isso não é verdade. O Butantan seguiu à risca seu protocolo – registrado antes do início do estudo –, que previa o cálculo da eficácia usando um parâmetro chamado de “Hazard Ratio” (“razão de perigo”, ou HR). Se a conta fosse feita com outro parâmetro, de Risco Relativo (RR), mesmo usado em vacinas como a da Pfizer, a conta daria 49,6%.

Tirando o fato de que não houve erro porque o Butantan fez os cálculos que se propôs a fazer desde o início – ninguém mudou a conta no meio do caminho para fazer o resultado parecer melhor, a opção pela HR em vez da RR, como já dissemos, constava do protocolo inicial –, a discussão em si é irrelevante. Temos uma boa vacina, capaz de impedir doença e morte, e vamos perder tempo gerando confusão por causa de meio ponto porcentual? Tanto a RR de 49,6% quanto a HR de 50,4%, se arredondadas para eliminar a casa decimal, viram 50%.

O fato é que temos uma vacina com eficácia adequada, capaz de reduzir pela metade o número de casos leves e a um quinto o agravamento da doença. A prioridade agora é vacinar, não discutir o sexo dos anjos. E, principalmente, investir nas campanhas de vacinação, para esclarecer a população, e para que todos se sintam seguros e confiantes para colaborar e se vacinar. Só conseguiremos controlar a pandemia com um esforço coletivo. E agora temos mais uma ferramenta para usar neste esforço. Vamos usá-la.

 

Natalia Pasternak é pesquisadora visitante do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência, "fellow" do Comitê para Investigação Cética (CSI) dos Estados Unidos e coautora do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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