Promessas de vacinas "para ontem" devem ser vistas com cautela

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4 ago 2020
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vacinas cdc

 

Não sei muito sobre vacinas e, confesso, tenho até medo de agulhas. Mas isso não me impede de, como todo ser humano nos dias de hoje, torcer descomedidamente para que logo surja uma vacina eficaz contra o novo coronavírus.  Certamente que esse é o melhor meio de dar fim à terrível pandemia que vivemos. Por isso, toda vez que me deparo com um texto na internet, ou ouço alguém falando sobre vacinas na TV, presto atenção redobrada na conversa. E daí, desculpem-me, não consigo evitar, começo a dar tratos à bola, e brotam incontáveis minhocas na cabeça. Eu não sei por que isso acontece comigo, mas imagino que tem a ver com alguns saudosos professores do curso médico. Professores de verdade, que pensavam com suas próprias cabeças, daqueles que não existem mais.

Quando a Rússia anuncia que vai disponibilizar, em tempo recorde, uma vacina anti-COVID-19, sem, evidentemente, completar os passos necessários para obtenção de um agente confirmadamente eficaz e seguro, todos desconfiam. Podemos estar sendo injustos com o simpático e sofrido povo russo, que já nos deu escritores formidáveis como Tolstói e Dostoiévski, a vodka Beluga, mas todos conhecemos os antecedentes de Vladimir Putin e sua maneira de fazer política, visando perpetuar-se no poder.

Portanto, não seria totalmente incorreto supor que, para o presidente russo, a real eficácia e os riscos do uso do novo agente imunizante seriam menos importantes do que a possível sensação de segurança trazida à população, e os ganhos em popularidade daí advindos. Tomara que a vacina russa seja um sucesso e venha a ser utilizada no mundo todo. Mas gato escaldado tem medo de água fria e, como dizia um antigo professor meu de medicina legal barbudo, todo ato é político. De fato, em tudo tem política. Segundo alguns, a atividade política começa no momento em que se juntam duas pessoas. E se Otto von Bismarck realmente disse que “os cidadãos não dormiriam tranquilos se soubessem como são feitas as leis e as salsichas”, ele bem poderia ter dito, “os cidadãos não dormiriam tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e a política”.

Desenvolver vacinas não é simples. Basta lembrar que até hoje não existem imunizações eficazes contra o vírus da aids, ou a malária. A primeira vacina contra a hepatite B, disponível comercialmente, só surgiu 16 anos após o isolamento do vírus. Apesar dos grandes avanços observados na biologia molecular e imunologia nas últimas décadas, esses fatos falam por si só.

Já disse, não sou especialista em vacinas, mas suponho haver pontos importantes a serem resolvidos pelos pesquisadores antes de nós recebermos a tão aguardada agulhada, tais como a definição dos níveis de anticorpos induzidos, duração da resposta imune, caracterização adequada dos possíveis efeitos adversos e, principalmente, determinação da real proteção conferida pelo agente. A busca por tais respostas demanda trabalho sério e tempo. Isso tudo, sem falar dos aspectos financeiros e operacionais relacionados à produção industrial em larga escala, aquisição e distribuição do produto. A pandemia realmente exige respostas rápidas, mas a ciência e a tecnologia têm seu tempo. Um equilíbrio efetivo entre esses elementos precisa ser atingido.  

Enquanto isso, as minhocas pululam no meu cérebro, principalmente quando ouço “autoridades” em COVID-19 dizerem que poderemos ter uma vacina disponível já no começo do próximo ano, ou até mesmo antes. É gozado, às vezes me parece que atualmente existem mais especialistas em vacinas anti-COVID-19, aparecendo nos meios de comunicação, do que o volume de conhecimentos disponível a ser compartilhado. Mas, reconhecer tal fato, naturalmente, não prenderia a atenção dos telespectadores, não venderia jornais (alguém ainda lê jornais?), nem celebrizaria ninguém. Sonhar com vacinas traz esperança, e desvia a atenção dos números horripilantes que insistem em nos perseguir.

À semelhança dos Estados Unidos, nós fizemos isolamento social do jeitinho brasileiro, à meia-boca, e agora vivemos uma “endemização” da pandemia: atingimos um platô na curva que insiste em não cair. Mas debater isso é desagradável, traz depressão, e faz ainda mais mal para a economia. Vamos então falar sobre vacinas mágicas. Vamos imaginar como será maravilhoso o dia em que recuperarmos o nosso estilo de vida tradicional. As vacinas libertadoras trarão o fim do “novo normal”.  

A proliferação de oligoquetas do meu encéfalo, devo admitir, pode refletir apenas ignorância, mas, juro, estou tentando melhorar. Até procurei no Instituto Universal Brasileiro um curso por correspondência sobre imunizações em COVID-19, mas não encontrei.

Alguns dos seis leitores desse texto dirão que este escriba é um deprimido, pessimista e derrotista. Quem me conhece bem, sabe que eu sou só um pouco assim. Ocorre, simplesmente, que ando tomado por angústia e receio diante do otimismo vacinal excessivo, e talvez fantasioso, e que pode não ser necessariamente bom. Se as expectativas anunciadas não se concretizarem de pronto, o tombo da moral coletiva será enorme. Todavia, o que mais me amedronta é a possibilidade da aprovação de um agente de eficácia duvidosa, por agências pressionadas pelos políticos, desejosos em dar soluções rápidas às aflições da população, ainda mais depois de muito esforço e dinheiro investidos no processo.

Parabenizo e agradeço genuinamente a todos os envolvidos no desenvolvimento das vacinas contra a COVID-19. Chego até a invejá-los, pela possibilidade de trabalhar em missão tão nobre. Podem ter certeza, não estou torcendo contra. Procuro apenas fazer um contraponto realista, e peço aos expertos e líderes que sejam mais comedidos nas suas declarações, colocando os pés no chão, e não prometendo o incerto. Afinal, os métodos de fazer salsichas, muito provavelmente, devem ser os mesmos em todos os países do mundo.

 

 José Baddini-Martinez é professor adjunto de Pneumologia da EPM/UNIFESP, professor aposentado da FMRP-USP e diretor científico da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia

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