Se eu pegar COVID-19, me deem tubaína, por favor

Artigo
4 jul 2020
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garrafas

Quando era criança, na década de 60 do século passado, adorava tubaína. Na verdade, eu gostava mesmo era de Itubaína. Aquela da garrafa de vidro, rótulo branco, com o Monumento do Ipiranga desenhado em azul, no alto impresso Primo Schincariol e Filhos. Itubaína era muito doce, mais escura e menos gasosa do que as guaranás, e tinha gosto de tutti-frutti, seja lá o que isso for. Ademais, a garrafa era grandona e permitia beber refrigerante até enjoar.

Naquela época, havia uma ditadura militar no país, mas nós, moleques, não tínhamos consciência dos acontecimentos. Apesar disso, os governos militares deixaram marcas profundas na minha geração, ainda que nem sempre seja fácil identificá-las:

Às vezes, justifico ir tomar banho para não me tornar um Sujismundo.

Outras vezes, me pego cantarolando canções da época:

“Eu te amo, meu Brasil, eu te amo,

Meu coração é verde-amarelo-branco azul anil.

Eu te amo, meu Brasil, eu te amo,

Ninguém segura a juventude do Brasil.”

            ou

“Este é um país que vai pra frente

O o o o o

De uma gente amiga e tão contente

O o o o o”

           

E os bordões ideológicos, igualmente, nunca me abandonarão:

“Brasil: Ame-o ou Deixe-o”, ou ainda, “Brasil, País do Futuro”.

E saibam que também frequentei aulas de “Educação Moral e Cívica”, “Organização Social e Política do Brasil” e “Estudos de Problemas Brasileiros”. Desse modo, acabei doutrinado para acreditar que este país tinha jeito, e o futuro seria risonho. Sim, acabei tornando-me positivista como Benjamin Constant ou, quem sabe, o Jarbas Passarinho. E positivistas creem em ciência e tecnologia igual religião. Tudo sempre embalado por aniversários com bolos cobertos de glacê açucarado e bolinhas de confeito prateadas, regados a muita Itubaína.

Estudei medicina, treinei em residência médica, me especializei em doenças respiratórias, fiz doutorado, pós-doutorado no exterior (rigorosamente falando, dois pós-doutorados), carreira acadêmica, ensino, pesquisa, assistência, formei recursos humanos, etc. Sempre procurei dar o melhor de mim a tudo que me dediquei e, de repente, me descobri parte do grupo de risco da pandemia. Mas, muito pior, foi começar a enfrentar dificuldades para compreender uma época que não se encaixa naquilo que aprendi e ensinei ao longo de toda vida. Por isso, agora me debato com questões irracionais.

Por que tanta paixão, polêmica e insensatez no tocante a potenciais tratamentos para a COVID-19? Quem trabalha com pesquisa clínica sabe que pode levar anos até se obter respostas definitivas sobre a eficácia de tratamentos para qualquer doença. Além disso, o fato de uma droga funcionar em testes de laboratório, ou em modelos animais, de maneira alguma significa que ela funcionará eficazmente na vida real. Um exemplo disso é o próprio álcool. Nós todos sabemos que ele é eficaz para matar o novo coronavirus nas superfícies de materiais, mas não se preconiza que as pessoas fiquem embriagadas para tratar a COVID-19.

Mas, repentinamente, brotaram em todos os cantos do Brasil virologistas, epidemiologistas, infectologistas, pneumologistas, intensivistas e imunologistas, que nunca sentaram em nenhum banco de universidade, pontificando panaceias para a população. E, igualmente condenável, médicos prescrevem coquetéis que mais parecem formulações alquímicas, mesmo para pacientes com doença leve ou assintomática. Tudo isso sem nenhuma evidência científica robusta que suporte tais condutas.

Sim, vivemos uma pandemia, como foram a gripe espanhola e a peste negra. E deveríamos ter aprendido alguma coisa com elas. Chá de folhas de goiaba e sais de quinino não diminuíram a mortalidade pelo vírus influenza em 1918. Nem, tão pouco, beber vinagre e esfregar cebolas no corpo trataram a peste. Infelizmente, em pleno século 21, estamos adotando comportamentos parecidos. Talvez seja a necessidade de achar respostas, a vontade de fazer alguma coisa, ou ainda, no fundo, no fundo, a obrigação de mitigar sentimentos de culpa da nossa consciência. Compaixão, quem sabe, seja importante motivadora desses comportamentos. Mas nem sempre.

Sabemos que atualmente não existem tratamentos específicos para a COVID-19. O melhor é manter distanciamento social, e os casos graves precisarão de cuidados médicos de qualidade, o que demanda leitos de unidade de terapia intensiva, bons respiradores, equipamentos sofisticados, e profissionais treinados. Em um país de Suíças e Biafras, é impossível garantir tratamento adequado para todos. Como sempre, os mais pobres arcarão com os maiores ônus em desassistência e número de mortes. Para ocultar essa terrível realidade, vende-se a ideia de que a medicação A ou B traz proteção, ou é efetiva. Política rasteira fantasiada de ciência.

A pressão por respostas rápidas faz com que estudos de baixa qualidade sejam divulgados como verdades absolutas a partir de plataformas de preprints. Até The Lancet se envolveu em saia-justa, após publicar artigo com dados duvidosos. Erros honestos cometidos pela pressão para achar respostas, ou oportunistas tentando impor agendas pessoais? Aliás, a defesa de agendas privadas é uma constante neste momento de crise.

Por isso, por que não permitir, simplesmente, que a ciência e a medicina sigam seu ritmo natural, sem interferências? Assim, aumentaremos as chances de alguma coisa dar certo. Lamento informar-lhes, a ciência é criação humana e, por isso, igualmente falha. A ciência é um processo, e nós apenas conhecemos fragmentos da realidade a cada passo. Portanto, não será surpresa obtermos respostas confiáveis somente quando a pandemia estiver terminada. É muita pretensão da Humanidade achar que um dia descobriremos toda a Verdade. Como minúsculas poeiras cósmicas, devemos aproveitar esse momento terrível para reconhecer nossa insignificância diante da infinitude do Universo. E por falar no Universo, esta também é boa hora para lembrar Einstein quando disse: “Duas coisas são infinitas: o Universo e a estupidez humana”. Podem crer, ele disse realmente isso, não é fake news.

Da janela do meu apartamento, observo pessoas andando na calçada com máscaras no queixo e me pergunto:          

Por que o pseudo-ministro da saúde é militar, se tanques de guerra o vírus não vão matar? Por que seu assistente é professor de inglês, se o vírus é chinês? Tentar ocultar dados epidemiológicos no meio de uma pandemia faz lembrar enredo sem imaginação de novela política de segunda classe. Em tempo, técnicos e acadêmicos rasguem os diplomas e evacuem todo seu conhecimento. Para dirigir a saúde do país é mais útil ter curso de tiro.

É fato, o governo federal nega a pandemia e falha na sua condução. Mas, então, por que prefeitos e governadores reduzem o isolamento social em locais onde a mortalidade pela doença não para de crescer? Será que isso vai dar certo?

Pode ser que essas dúvidas sejam infundadas e minhas ideias cem por cento equivocadas. Afinal, seres humanos vivem errando. Eu mesmo errei ao votar no Bolsonaro em 2018. Mas é triste constatar que estou no final da vida e, pelo menos para mim, o Brasil sempre foi e será “o país do futuro”. Um futuro que nunca chegou, para um país perdido, que não sabe para onde vai. 

Desse modo, por favor, se eu estiver internado em alguma unidade de terapia intensiva com insuficiência respiratória pela COVID-19, sedem-me com tubaína. Sim, me deem doses tóxicas de tubaína, até eu entrar em coma induzido. Daí, quem sabe, minha mente impregnada de tutti-frutti possa voltar aos tempos felizes da infância, onde eu acreditava num futuro pessoal e no do país. Uma época ingênua, em que eu escutava Jovem Guarda no radinho de pilha, existiam biquínis de bolinha amarelinha, mas não se ouvia falar em terraplanistas.    

E, para concluir, lembrem-se daquilo de que os políticos nunca se esquecem: mortos não votam.

 

José Baddini-Martinez é professor de Pneumologia da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP), professor aposentado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP) e diretor científico da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia

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