Cloroquina vira espetáculo de oportunismo

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7 abr 2020
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escultura de COVID-19 Photo by Georg Eiermann on Unsplash

 

A irracionalidade e o oportunismo que vêm sustentando muito do “hype” em torno do uso da cloroquina/hidroxicloroquina (CQ/HCQ), com ou sem a ajuda do antibiótico azitromicina (AZ), no tratamento de pacientes de COVID-19 parecem estar, finalmente, sendo expostos pelo que são — ainda que muito mais devagar do que deveriam, se formos levar a tão propalada preocupação com o bem-estar dos pacientes a sério.

A paisagem pintada pelas mídias – sociais e outras – a respeito do assunto é um torvelinho de contradições e histórias mal contadas: enquanto o Ministério da Saúde se propõe a disponibilizar a cloroquina  “como terapia adjuvante no tratamento de formas graves, em pacientes hospitalizados” (Nota Informativa 05/2020), um grupo privado de medicina passa a fornecer o fármaco a pacientes ao primeiro sinal de febre, e até mesmo via motoboy.

Aumentando ainda mais a confusão, o virologista da USP Paulo Zanotto apareceu em um vídeo do YouTube sugerindo que a combinação de HCQ e azitromicina, entre outros efeitos, atuaria na mitocôndria das células humanas, bloqueando a produção de energia, o que impediria a captura dessa energia pelo vírus e a subsequente multiplicação do invasor.

Pondo de lado o fato de que uma combinação de fármacos capaz de impedir a produção de energia pela célula simplesmente mata a célula — o que talvez seja desejável num tratamento oncológico, mas não num antiviral — o mecanismo proposto é tão esdrúxulo, do ponto de vista biológico, que ombreia com a ideia defendida por outro professor da USP, o falecido Gilberto Chierice, de que o câncer é causado por mudanças no pH celular, e não por mutação genética.

Em meio a isso tudo, a desinformação impera: há quem fale em centenas pacientes recuperados “graças” à CQ, HCQ ou HCQ/AZ em São Paulo, mas ninguém apresenta dados. E sem dados, a atribuição da cura a esses fármacos se reduz a bravata.

É difícil não ver oportunismo na bravata. Estima-se, afinal, que a taxa de recuperação das pessoas que contraem o vírus — mesmo entre as que requerem hospitalização — é  de mais de 90%. Sem controles adequados, atribuir parte desses 90% à HCQ faz tanto sentido quanto atribuir a cura de um caso qualquer de câncer à fosfoetanolamina, tão cara a Chierice, ou a cura de um resfriado à vitamina C.

O mérito, que por justiça deveria caber ao tratamento convencional, acaba, por ingenuidade ou má-fé, sendo atribuído à nova fórmula.

A ampliação do uso para quem está no início da doença, ou mesmo para aqueles que apresentam sintomas semelhantes, mas não chegaram a ser testados — que podem ter uma alergia, uma gripe ou um resfriado, não o vírus SARS-CoV-2 —, só fará aumentar ainda mais a ilusão de efeito: num cenário hipotético de disseminação ampla da CQ/HCQ, milhares de pessoas que se recuperariam naturalmente da COVID-19, ou que nem sequer chegaram a contrair o vírus, passarão a atribuir suas “curas”, reais ou imaginadas, ao remédio.

 

Estudos atacados

Mas, entre contradições e bravatas, alguns fatos concretos insistem em aparecer. No fim da semana passada, o artigo científico que pôs a combinação cloroquina/azitromicina no mapa viu-se sob ataque, até mesmo, dos responsáveis pelo periódico que o publicou. Depois de ter sido impiedosamente demolido nas críticas pré e pós-publicação, o trabalho do grupo francês de Didier Raoult tornou-se alvo de uma nota de preocupação emitida pela própria sociedade científica que mantém o International Journal of Antimicrobial Agents. O estudo “não atende aos padrões esperados de qualidade” científica, diz a crítica.

Enquanto isso, um estudo chinês com 62 pacientes, que teria encontrado as primeiras evidências concretas de benefício da HCQ contra a COVID-19, derrete sob o escrutínio da comunidade científica. Descobriu-se, por exemplo, que os autores mudaram as condições do teste no meio do caminho: a versão registrada junto ao governo chinês previa um estudo com 300 pacientes, para verificar redução na carga viral, uma métrica objetiva.

O que veio apresentado no artigo foi um trabalho com 62 pacientes e baseado em métricas menos “duras”, como tempo de recuperação, duração da febre e da tosse.  Uma explicação comum para esse tipo de desvio de rota é que o estudo original encaminhava-se para um resultado negativo, e os autores “pescaram” o que puderam para salvar a publicação.

Além disso, o grupo de pacientes que recebeu a HCQ incluiu um número maior de pessoas que já havia entrado no estudo com tosse e febre — o que sugere que a melhora mais rápida, vista nesse grupo, pode ser atribuída à evolução natural da doença, e não ao medicamento.

Nesta terça-feira, dia 7, a Folha de S. Paulo publicou entrevista com o infectologista Marcus Lacerda, que coordena um estudo controlado da HCQ, e que não está encontrando diferença significativa entre as taxas de sobrevivência de pacientes que receberam o fármaco e os que ficaram restritos ao tratamento convencional. Lacerda chama ainda atenção para o dado de que a dose mais alta testada mostrou-se tóxica.

 

Vampirismo

O protocolo para uso precoce da combinação HCQ/AZ, proposto por Zanotto e também pela médica Nise Yamaguchi, é inspirado no que o médico americano Vladimir Zelenko diz ter posto em prática numa comunidade judaica de Nova York. “Diz ter praticado”, porque, assim como Zanotto, Zelenko não apresenta dados, apenas bravatas via YouTube. Como bem resume o serviço Estadão Verifica, do jornal O Estado de S. Paulo, “não há evidências de que essa pesquisa tenha realmente sido realizada, a não ser a palavra do próprio médico”.

O uso precoce, é bom repetir, representa um modo perfeito de gerar falsos positivos e multiplicar “casos de sucesso” espúrios: se mais de 90% dos diagnosticados se recuperam por conta própria ou com base nos cuidados médicos usuais, o acréscimo, sem controles adequados, de novas drogas constitui prática de vampirismo epistêmico — o novo tratamento, mesmo se for inócuo ou, até, prejudicial, suga para si as glórias do sucesso que, na verdade, cabem à natureza ou às demais medidas curativas adotadas.

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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