Por causa de pesquisas para um livro em que estou trabalhando, ando lendo muito a respeito das intrigas políticas de Roma antiga – principalmente o século final da República e os primeiros séculos do Império. Por uma dessas coincidências malucas que os jungianos gostam de chamar de “significativas”, semana passada, enquanto o drama da “Operação Punhal Verde-Amarelo” se desenrolava, esbarrei numa carta, supostamente do ano 166, em que o imperador Marco Aurélio supostamente comenta boatos de que um golpe de Estado estaria sendo organizado por um general muito popular, Avídio Cássio.
O parágrafo acima está cheio de “supostamentes” porque o consenso entre historiadores é de que a carta é falsa, uma das muitas invencionices geradas pela imaginação dos autores (ou autor?) da História Augusta, uma coletânea de biografias de imperadores romanos compilada – com variados graus de liberdade literária e licença poética – por volta do ano 400. “Fake news” em latim, portanto.
Mas, dada a devida perspectiva histórica, até as “fake news” de séculos atrás podem ser instrutivas para o presente. Em meio a considerações mais ou menos fatalistas – se o Destino quiser que Cássio seja o próximo imperador, não há nada que se possa fazer para evitá-lo, etc. – “Marco Aurélio” queixa-se de que a única forma que um governante tem de provar que é vítima de uma conspiração é sendo morto, porque quando toma medidas preventivas, “é inevitável que mesmo aqueles cuja culpa é provada pareçam vítimas de opressão”.
O pensamento original – o governante que tenta se defender de um golpe sempre acaba passando recibo de opressor, não importa se o golpe é real ou não – é atribuído ao imperador Domiciano, que havia reinado cerca de um século antes de Marco Aurélio. E essa é uma citação que o autor da História Augusta levanta de forma legítima. Segundo o historiador Suetônio, Domiciano costumava afirmar que “todos os imperadores são necessariamente infelizes, já que somente aos serem assassinados conseguem convencer o público de que as conspirações contra suas vidas são reais”.
Domiciano, por falar nisso, era um tirano paranoico insuportável que via conspiradores por todo lado e, de fato, acabou assassinado.
Incerteza
Questões jurídico-ideológicas à parte, o debate sobre as consequências que devem ser encaradas pelos envolvidos no tal “Punhal” – e seus mentores – toca um par de temas mais amplos a respeito de inferência indutiva, e que muitas vezes aparecem em discussões sobre ciência e aplicação prática do conhecimento científico: como pensar evidência em termos contrafactuais (isto é, quando o evento “evidenciado” não ocorreu ainda, ou foi evitado)? Como distinguir precaução razoável de alarmismo, medidas preventivas razoáveis de opressão?
Em ciência, a questão contrafactual costuma administrada por meio do uso de controles – em termos ideais, um grupo controle mostra o que aconteceria num mundo em que a intervenção testada não existe.
Controles são, ou deveriam almejar ser, simulações de universos paralelos. Existem casos de aplicação de controles para questões sociais (já saiu até um par de Prêmios Nobel para variações da abordagem), mas a estratégia desmorona quando se chega à escala do comportamento individual: não dá para “simular”, de qualquer modo significativo, o que os conspiradores teriam feito se o ministro Alexandre de Moraes tivesse saído de casa no dia marcado para sua “captura”.
No eixo precaução/alarmismo, é inevitável, caso se pretenda uma análise séria, tratar realisticamente das questões de probabilidades. É preciso reconhecer e neutralizar a falácia das expectativas impossíveis (“mas você me dá certeza absoluta de que precisamos de mais proteção contra furacões?”). É necessário aceitar incertezas, tentar quantificá-las da melhor forma possível e construir uma compreensão clara dos riscos. Este é o único modo de prosseguir de forma responsável.
Responsabilidade que inclui reconhecer que abraçar a incerteza traz dificuldades de natureza política e psicológica: o pseudo-“Marco Aurélio” e Domiciano estavam se referindo de complôs contra imperadores, mas – transplantando suas falas, anacronicamente, para o século 21 – poderiam estar falando de enchentes, ondas de calor ou pandemias: a única forma de convencer setores importantes da opinião pública de que esses são problemas graves que deveriam ser evitados parece ser esperando que aconteçam (o que torna impossível evitá-los!).
Legítimo escocês
Saindo da ciência climática e voltando ao mundo dos complôs, esbarramos, de novo, na questão da imponderabilidade dos comportamentos individuais e na generosidade egocêntrica dos juízos humanos (de que tratei neste outro artigo). Há equações para estimar mudanças na probabilidade de eventos climáticos extremos, mas não de convulsões sociais.
Mesmo quando, vistos a posteriori, os sinais de alerta parecem claros e óbvios – ao menos, para quem tem o privilégio da perspectiva histórica –, em geral o homem (ou mulher) comum, imerso cotidiano dos eventos, tende a subestimar seriamente a capacidade de seus concidadãos para cometer atrocidades. Essa subestimação dura não apenas até as atrocidades se consumarem, mas pode perdurar por muito tempo depois disso.
Como escreveu o filósofo David Livingstone Smith no livro “On Inhumanity”, “devemos resistir à tentação de dizer que formas perigosas de discurso, e os atos desumanos que delas decorrem, ‘não são iguais’ aos que os que precederam o Holocausto, ou o genocídio de Ruanda, ou o genocídio dos rohingya. Não são iguais até que são iguais, e então já é muito tarde”.
Um modo que me parece razoável de lidar com isso, ao menos na esfera individual (do que eu chamo de “higiene epistêmica”), é manter em mente definições, as mais claras e límpidas possíveis, dos limites do aceitável, e aplicá-las de forma anonimizada – considerando fatos e circunstâncias, não pessoas e ideologias. Isso ajuda a evitar aquilo que o filósofo Anthony Flew chamava de “falácia do legítimo escocês”.
O exemplo hipotético dado por Flew (em seu livro “How to Think Straight”) é o de um nacionalista escocês que, ao ler no jornal sobre os crimes de um maníaco sexual, reage dizendo “Nenhum escocês faria isso!”. Mais tarde, ao ler sobre um maníaco sexual nascido, criado e vivendo na Escócia, nosso nacionalista emenda sua declaração da seguinte forma: “Nenhum legítimo escocês faria isso!”
Aplicada ao universo das paixões políticas e das atrocidades humanas, a falácia pode ser usada de duas formas: dada a construção “nenhum partidário da ideologia A/membro do grupo B jamais cometeria a atrocidade C”, e diante do fato concreto de que uma figura identificada com A ou B realmente praticou C, nega-se ou que o criminoso seja um partidário/membro “legítimo” ou, se for impossível (ou inconveniente) descartá-lo, que C seja mesmo uma atrocidade.
Infelizmente, hoje em dia evitar tomar parte nessa gangorra retórica parece requerer mais força de caráter do que anda disponível no mercado.
Epílogo
No mundo real, Avídio Cássio de fato proclamou-se imperador em 175, depois de receber um informe (falso) de que Marco Aurélio havia morrido. Quando a informação correta finalmente o alcançou, Avídio decidiu que já tinha ido longe demais e não poderia recuar. O historiador Dio Cássio (escrevendo por volta do ano 220) diz que Marco Aurélio ofereceu até perdão ao general.
O império se encaminhava para uma sangrenta guerra civil, mas um par de soldados resolveu matar o insurgente e levar sua cabeça de presente para o imperador (que, segundo a versão de Dio Cássio, ficou profundamente entristecido pela perda do amigo e mandou sepultá-la).
Termina assim o relato sucinto do historiador: “Desse modo foi morto o usurpador, após um sonho de império que durou três meses e seis dias; e seu filho, que se encontrava alhures, também foi assassinado”.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)