A morte da sabedoria das multidões

Apocalipse Now
18 fev 2024
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multidão

 

Houve um tempo, quando os bichos falavam e a Internet era discada, em que alguns intelectuais de respeito (e outros menos cotados) previram que o mundo online viria a liberar todo o potencial da chamada “sabedoria das multidões” – um conhecimento difuso, que não está presente na cabeça de nenhum indivíduo específico, mas se revela por meio de comportamentos coletivos.

Era a época do PageRank, o algoritmo original do Google, que hierarquizava os resultados de buscas pelo número de links dirigidos a cada página. Assim, por exemplo, ao buscar “vacina”, o usuário do Google de 1998 seria levado para a página Web que fosse o destino do maior número de links sobre vacinas detectados pelo motor de busca.

A ideia era simples: cada criador de página Web individual, ao discutir a questão das vacinas, iria linkar para as fontes que lhe parecessem mais confiáveis. O PageRank faria então uma espécie de “apuração eleitoral” automática, identificando quais as fontes consideradas melhores pela maioria das pessoas que tratava do assunto. O resultado da busca seria a destilação dessa sabedoria das multidões.

Também houve quem visse os sistemas de classificação dos agregadores online de resenhas como solução para os paradoxos que emergem em sistemas eleitorais – por exemplo, quando o candidato eleito, porque mais votado, é também o mais rejeitado.

Num sistema de ranking, em que cada eleitor pode dar a cada candidato de zero a cinco votos (como as estrelinhas nas resenhas da Amazon), esse problema desaparecia: um candidato que recebesse três “estrelinhas” de, digamos, 90% dos eleitores teria, no fim, mais votos do que um que recebesse cinco de 50% e zero dos outros 50%, e representaria um consenso social mais genuíno. Rotten Tomatoes no lugar da urna eletrônica!

Saltando para 2024, não só o Google tirou há tempos o PageRank do papel de algoritmo de busca principal, como há estudos mostrando que pesquisar online tornou-se um modo quase garantido de ser mal informado (casos aqui e aqui). E a manipulação de agregadores de resenhas já vem causando escândalos na indústria literária e desconforto na audiovisual.

 

Teoria e prática

Como conceito abstrato e frase de efeito, “sabedoria das multidões” é, com exceção dos elitistas mais empedernidos, uma formulação quase irresistível. Agrada à direita, que vê ali uma validação do princípio da eficiência dos livres mercados e do egoísmo esclarecido. Agrada à esquerda, que enxerga uma validação da busca por hierarquias mais horizontais (ou inexistentes) e de auto-organização. Agrada a populistas de todos os matizes ideológicos, porque, afinal, “multidão” e “povo” são termos assemelhados.

Agrada até mesmo a pensadores que se dedicam a áreas com pouca ligação direta com a política, porque evoca a ideia de sistemas e propriedades emergentes, que surgem de modo não intencional a partir da interação das partes.

A “sabedoria das multidões” é, em teoria, uma espécie de pedra filosofal, a substância mágica que agrada a todos e resolve todos os problemas. Mais ainda: surge de modo espontâneo, sem a necessidade de regras especiais, trabalho ou esforço consciente por parte de ninguém (no máximo, sua extração requer uma planilha ou um algoritmo). O todo é maior e melhor do que a soma das partes, e as partes não têm com o que se preocupar.

O problema, quando se passa da teoria para a prática, já foi diagnosticado um sem-número de vezes, por exemplo pelo economista britânico Charles Goodhart (Lei de Goodhart: “Quando a métrica se torna meta, ela deixa de ser uma boa medida”) e pelo psicólogo e cientista social americano Donald Campbell (Lei de Campbell: “Quanto mais um indicador social quantitativo é utilizado na tomada de decisões sociais, mais torna-se alvo de influências corruptoras”).

Em resumo: quando um dado extraído da “sabedoria das multidões” se torna determinante para alguma coisa (gerar um resultado de busca, digamos), pessoas e grupos interessados nessa coisa a ser determinada passam a operar de modo consciente para interferir na determinação, poluindo os dados de entrada. O comportamento de parte da multidão deixa de ser espontâneo e passa a ser estratégico. O que era sabedoria vira esperteza.

 

Ilusão persistente

Com isso, o fato causador dos comportamentos individuais que entram no cômputo da sabedoria coletiva muda: o universo de páginas Web criadas por autores preocupados em oferecer links para as melhores fontes de informação sobre vacinas é invadido por páginas cujo principal objetivo é levar leitores para sites de venda de curas naturais ou de propaganda antivaxxer.

A conexão lógica que permitia pressupor a existência de um conhecimento legítimo a ser destilado, difuso e oculto nos dados de entrada, deixa de ser válida. O erro de seguir confiando na “sabedoria das multidões” nessas circunstâncias é análogo ao de imaginar que o comportamento de uma criança numa loja de doces, sob o olhar vigilante dos pais, é igual ao que ela exibiria se estivesse lá sozinha.

E, no entanto, a ilusão persiste. Das decisões sobre política científica baseadas em indicadores quantitativos agregados à atenção dada pela mídia a sites agregadores de resenhas (mídia que, na hora de selecionar fontes, olha para o número de seguidores online que cada autoproclamado “especialista” tem), o poder corruptor da confusão entre métrica e meta segue sendo sobriamente reconhecido na teoria e festivamente ignorado na prática. No futuro imediato, com a expansão do uso da inteligência artificial – que se encaminha para assumir o papel de Agregador Supremo –, a situação só tende a se agravar.

Por quê? Meu palpite é que o mito da sabedoria pura das multidões é forte demais para resistir, com a retórica politicamente correta (sempre correta, não importa sob qual ponto de vista político!) e a promessa sedutora de libertar o ser humano do fardo de gastar tempo e energia pensando bem antes de tomar uma decisão ou de avaliar uma situação. Acuidade cognitiva grátis: soa bom demais para ser verdade – porque é puro pensamento mágico. Mas é uma mágica em que a civilização se fia cada vez mais, por conta e risco de todos nós.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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