Desinformação é o novo pânico moral?

Apocalipse Now
4 nov 2023
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crocodilo

 

“Pânico moral" é um nome dado a situações em que a sociedade, ou uma parte da sociedade, é tomada por uma preocupação irracional e exagerada em relação a uma circunstância que, por algum motivo, é vista como uma ameaça grave e urgente. A circunstância pode ser real ou imaginária: como exemplos de pânicos morais causados por “fatos” imaginários podemos citar a caça às bruxas na Europa, entre o fim da Idade Média e o início da Era Moderna, e o “pânico satânico” que tomou conta da mídia nos EUA e no Reino Unido na década de 1980.

Exemplos clássicos de pânicos morais criados em torno de situações reais incluem os da delinquência juvenil e dos espiões comunistas, ambos desencadeados nos EUA na década de 1950. Os dois problemas – a atuação de agentes soviéticos em solo americano e a violência provocada por adolescentes – realmente existiam, mas a “ameaça” real que representavam era muito menor do que o pânico sugeria, e muitas das medidas tomadas em relação a ambos foram desproporcionais, injustas e fruto muito mais de paranoia do que de uma avaliação racional de causas e riscos.

Como no caso da delinquência juvenil, um pânico moral pode ter como fulcro uma situação que já existia muito antes do desespero bater, mas que era ignorada pela maioria das pessoas, ou tolerada, ou que até mesmo vinha sendo tratada racionalmente por autoridades e especialistas – autoridades e especialistas que, de repente, veem-se atropelados por uma avalanche de cobranças, recriminações, acusações, interferências e palpites sem noção lançada por gente que, de repente, “descobriu” o problema.

Pânicos morais tendem a atrair oportunistas – gente que vê, na perplexidade pública, um modo de ganhar dinheiro, poder ou prestígio – e a gerar dois tipos de bode expiatório. O primeiro é o agente do pânico em si (as dores da sociedade não são mais causadas por problemas estruturais, injustiças e desigualdades, mas pelos comunistas, pelos satanistas, pelas bruxas, pela garotada malcriada etc.). O segundo são grupos identificados como colaboradores ou instigadores do suposto “mal” (autores de histórias em quadrinhos, músicos de heavy metal, jogadores de RPG ou videogame, gente sem Jesus no coração...).

 

Errado ou proposital

Um artigo recente na revista online Undark pergunta se o mundo contemporâneo não estaria vivendo um pânico moral como misinformation. O termo em inglês pode ser traduzido como “informação ruim”, e meu exemplo favorito é o de quando uma pessoa para outra na rua e pergunta se o ponto de ônibus mais próximo fica para a direita ou para a esquerda, e a outra, na maior sinceridade e boa vontade, mas talvez confusa, dá a resposta errada. “Informação ruim”, portanto, é uma categoria de erros sinceros e bem-intencionados.

disinformation, ou desinformação, é mentira deliberada – uma afirmação que é factualmente falsa, ou verdadeira mas tirada de contexto, usada para afetar o comportamento e a opinião de algum público. Há uma correia de transmissão ligando desinformação a informação ruim: um agente malicioso pode lançar uma mentira deliberadamente, e depois pessoas inocentes podem repeti-la por ingenuidade, como o seu tio disparando teorias de conspiração no grupo de mensagem da família. O texto em Undark faz a constatação meio óbvia de que informação ruim sempre existiu, e é claro que erros devem ser corrigidos sempre que possível, mas não dá para proibir as pessoas de estarem (ou serem) enganadas. É da natureza humana.

Tudo muito anódino, no fim das contas, mas me fez pensar: será que a preocupação social e o debate público em torno de desinformação (não apenas da mera “informação ruim”) já não estaria assumindo ares de pânico moral? Lembremo-nos de que um pânico moral pode ser construído mesmo em torno de um problema real e relevante – o que o caracteriza é a resposta exagerada, irracional, a revoada de oportunistas e a eleição de bodes expiatórios.

 

Oportunismo

Não sei dizer se o estado atual de preocupação da sociedade com o problema da desinformação é exagerado. Depois de quase 30 anos numa carreira dedicada, basicamente, a colecionar, explorar e expor ideias pseudocientíficas e argumentos falaciosos, eu talvez esteja comprometido demais para fazer esse tipo de avaliação. Ter muito mais gente achando importantes problemas análogos aos que, há décadas, considero fundamentais é bem legal – até certo ponto.

respostas irracionais e agentes oportunistas vêm pipocando por toda parte. Um dos casos mais gritantes de oportunismo é o site Brasil Contra Fake, do Governo Federal, que mistura de forma indiscriminada o esclarecimento legítimo de notícias falsas à produção de “spin” –  interpretações enviesadas  e releituras caridosas de fatos inconvenientes – pró-governo, num processo que mina a credibilidade do conjunto (e produz um tipo de meta-desinformação), ao estampar um carimbo genérico de “fake news” sobre realidades que ensejam críticas pertinentes à atuação do Planalto. Tática, aliás, inaugurada por Donald Trump e abraçada pelo portador prévio da faixa presidencial.

Já a irracionalidade aparece, por exemplo, no clima de “barata-voa” que se instala em grupos, empresas e instituições que se propõem a, em princípio, fazer alguma coisa, qualquer coisa, para “combater a desinformação”. Só não sabem o quê – e, não raro, veem eventuais boas intenções sufocadas ou sequestradas pelo oportunismo e pelo espírito de corpo: desinformação é o que os outros fazem, jamais o que sai aqui de dentro. É preciso fazer alguma coisa, enfim, mas desde que não saia caro, não incomode ninguém e não nos obrigue a limpar o umbigo.

 

Inimigo ideal

Mas talvez o que mais aproxime o modo como a sociedade atual lida com o tema da desinformação de uma situação concreta, clássica, de pânico moral seja o uso do termo como bode expiatório. Problemas que existem há anos – quando não, há décadas ou séculos – não são mais causados por escassez de recursos, incompetência ou negligência, mas por “desinformação”. Hesitação vacinal é provavelmente o exemplo mais emblemático: as taxas de vacinação infantil já vinham caindo de forma perigosa no Brasil muito antes de que qualquer iniciativa organizada antivaxxer ou ideologia política anticientífica se estabelecesse do país.

As causas eram (e são) várias e conhecidas – começando no investimento insuficiente e ineficiente em campanhas convidando as famílias a vacinar os filhos, passando pela inconveniência do horário de funcionamento (e da localização) de diversos postos de vacinação e chegando ao treinamento inadequado de equipes de saúde. Mas jogar a culpa na “desinformação” é mais fácil (e dá menos trabalho) do que pisar em calos para corrigir distorções reais.

“Desinformação” é um monstro incorpóreo e que convenientemente não tem bancada no Congresso, lobby no Executivo ou no Judiciário, mandato popular, estabilidade no emprego, voto na congregação, nem amigos nas Forças Armadas ou acesso ao poder econômico; não anuncia nos jornais ou na TV; não é representado por sociedade, conselho de classe e nem por sindicato. É o bode expiatório perfeito.

 

Panos quentes

No entanto, fora das esferas do mito e do bom-mocismo estéril, a desinformação do mundo real é propagada por (e atende aos interesses de) gente que tem uma, ou duas, ou várias dessas características: não dá para “combater a desinformação” a sério sem, em algum momento, encarar esse fato.

Nos grandes pânicos morais da história, a sinergia entre irracionalidade e oportunismo gerou tormentas que, fora de controle, engoliram reputações – quando não vidas – de muita gente inocente. Enquanto “desinformação” continuar a ser um bode expiatório amorfo, ao menos esse risco está afastado.

O Brasil tem uma tradição peculiar de ver a espiral de irracionalidade e oportunismo terminar não em tempestade, mas em pizza. Mas, como nosso grande pânico moral mais recente – a esquerdofobia lavajatista – bem demonstrou, a paciência da sociedade brasileira para com soluções de panos quentes anda curta. Há um caminho sóbrio e racional para enfrentar a desinformação, e que não é nem o do oportunismo hipócrita (ou covarde) e nem o da terra arrasada. Quem se preocupa realmente com o problema deve encontrar logo a coragem de trilhá-lo – enquanto ele estiver aberto.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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