A importância das “bobagens” que parecem bobagem

Apocalipse Now
26 ago 2023
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Homem astrológico

 

Alguns comentários sobre meu mais recente livro escrito em parceria com Natalia Pasternak, “Que Bobagem!”, manifestam uma certa surpresa com o fato de termos nos dado ao trabalho de, além de apontar a nudez de certos monarcas soberbos (como homeopatia e psicanálise), anotar também a imodéstia de alguns aparentes bobos da corte, como astrologia e óvnis, que seriam temas, como dizem os britânicos, beneath contempt, indignos até mesmo daquele mínimo de atenção necessário para manifestar desprezo. Por que tratar dessas coisas?

A resposta curta é: não existe irracionalidade inofensiva – eis um fato amplamente documentado. A partir do instante em que premissas falsas passam a circular no debate público, a questão de quais serão mero entretenimento de nicho e quais irão mobilizar políticas públicas ou pôr vidas humanas em risco depende apenas do espírito do tempo, dos ânimos políticos e do acaso.

É um triste fato da vida que nenhuma ideia é ruim demais a ponto de seus defeitos flagrantes absolutamente impedirem que alguém, em algum lugar, acabe por levá-la tragicamente a sério. E esse “alguém” pode ser uma pessoa, uma multidão, um país. Vamos nos lembrar de que, menos de uma década atrás, o instigador maior do movimento antivacinas nacional e da tentativa de golpe de Estado de janeiro último era considerado beneath contempt por muita gente séria.

Este talvez seja um dos erros de avaliação mais comuns com que nos confrontamos na atividade cética: a convicção, mantida por inúmeras pessoas sensatas e bem-intencionadas, de que existe algum tipo de conceito universal de absurdo óbvio, e de que tudo o que se encaixa nele nunca é realmente levado a sério por ninguém. Em estudos de comunicação às vezes se fala num “efeito terceira pessoa”, a ideia de que “os outros” – os terceiros – são “manipulados pela mídia”, enquanto os pesquisadores seriam espertos demais para se deixar impressionar. Esse efeito tem dois aspectos: o de subestimar a capacidade crítica do público (a recepção de conteúdo nunca é passiva) e de superestimar a do pesquisador.

A noção do absurdo óbvio é uma espécie de “efeito terceira pessoa” com sinal parcialmente invertido: segue superestimando a capacidade crítica de quem faz o julgamento, mas projeta essa avaliação generosa sobre a totalidade da população.

Crucialmente, esquece que cada indivíduo existe num contexto particular, com referências cognitivas, laços comunitários e necessidades emocionais próprias, que levam a vulnerabilidades variadas e específicas. Simplificando: cada pessoa terá suas razões e motivos para querer acreditar, ou sentir-se inclinada a acreditar, em algumas coisas e não em outras, considerar certas propostas “absurdas” e outras, razoáveis. Contextos individuais variam, assim como os gatilhos que ativam velhos conhecidos como viés de confirmação, raciocínio motivado e outros mecanismos que permitem que o cérebro abra mão da verdade em nome do conforto.

 

Discos voadores

A ufologia em geral, e a ideia de visitantes extraterrestres em particular, tem profundas raízes culturais no Brasil, principalmente graças à fertilização cruzada que sofreu com o espiritismo e os diversos filhotes brasileiros da teosofia. O Senado Federal até já promoveu audiência pública sobre o assunto. A cientologia, movimento religioso criado pelo escritor de ficção científica L. Ron Hubbard e que conta com milhares de seguidores no mundo, incluindo celebridades e multimilionários, propõe que os problemas da Humanidade tiveram origem num grupo de exilados espaciais, ideia não muito diferente da mitologia nacional dos "Exilados de Capela". E vamos nos lembrar de que pesquisa encomendada pelo Instituto Questão de Ciência ao DataFolha em 2019 mostrou que 38% dos brasileiros acham que o governo esconde informações sobre alienígenas e que 31% acreditam em astronautas do passado.

Se a crença de que somos visitados regularmente por extraterrestres que nos deixam mensagens, ou que utilizam seres humanos como cobaias; ou que seres humanos são extraterrestres “aprisionados” em corpos materiais parece mera excentricidade, vamos nos lembrar de que, levada radicalmente a sério, pode ter consequências trágicas: em 1997, trinta e nove pessoas tiraram as próprias vidas, nos Estados Unidos, para que seus espíritos pudessem ser levados ao espaço por um disco voador supostamente escondido na cauda de um cometa, no suicídio coletivo da seita Heaven’s Gate.

Décadas antes, em 1954, outro grupo de devotos de discos voadores nos EUA havia tomado uma série de medidas radicais – incluindo abandonar empregos, vender casas – em preparação para um resgate espacial que nunca veio. Essa experiência deu origem a uma obra clássica da psicologia, “Quando a Profecia Falha”, de Leon Festinger e colegas.

 

Astrologia

A astrologia, por sua vez, já teve momentos de grande influência sobre a política. O ditador português António Salazar foi, durante pelo menos 30 anos, guiado pelos horóscopos produzidos por sua às vezes amante Maria Emília Vieira, que com o pseudônimo de “Sibila” assinava colunas astrológicas num jornal. Nos Estados Unidos, o ex-chefe de Gabinete do presidente Ronald Reagan, Donald T. Regan, escreve em suas memórias que a agenda presidencial era caótica, com compromissos remarcados segundo instruções ditadas pelos astros.

A tradição é antiga. O historiador romano Cássio Dio relata que pelo menos dois imperadores, Tibério e Domiciano, tinham o hábito de investigar os horóscopos de homens eminentes e, caso encontrassem sinais de um futuro glorioso ou traços de caráter ligados à ambição política, mandar matá-los. Sobre Tibério, o historiador escreve:

“No caso de muitos, ele cuidava de se informar do dia e da hora em que haviam nascido, e com base em seu caráter e destino, dessa forma investigados, executá-los. Se descobrisse quaisquer qualidades de soberba ou desejo de poder em qualquer um, matava-o”.

Neste século 21, a astrologia, embora seja vista pela maior parte do público como uma atividade mais “recreativa”, segue trazendo riscos quando levada a sério – e, ao menos de acordo com o que a imprensa tem publicado nos últimos anos, isso acontece cada vez mais. Aconselhamento financeiro astrológico e avaliação astrológica em processos de recrutamento profissional são serviços livremente oferecidos no mercado, e que podem causar prejuízos graves em termos tanto monetários quanto de oportunidades profissionais.

 

Vida dos outros

Esses são apenas dois exemplos de como “absurdos óbvios” podem gerar consequências enormes, dadas as circunstâncias. Quando o assunto são crenças injustificadas sobre a realidade empírica, a linha entre inofensivo e catastrófico é traçada por contingência histórica, não por alguma característica intrínseca dos sistemas em questão.

Coisas diferentes fazem sentido para pessoas diferentes. O comediógrafo romano Terêncio costuma ser lembrado pelo pronunciamento “sou humano, e nada do que diz respeito à Humanidade me é indiferente”. O que talvez poucos dos admiradores da frase saibam é seu contexto original: ela surge no início de uma comédia chamada Heauton Timorumenos, expressão grega que significa algo como “O Autocastigo”, ou “A Punição de Si Mesmo”.

O dizer famoso aparece logo depois de o personagem-título, o homem que castiga a si mesmo, perguntar ao vizinho que assiste, curioso, ao suplício autoinfligido se ele não tem nada melhor para fazer, se está com tempo livre sobrando. Muitas das queixas contra a atenção dada aos supostos “absurdos óbvios” carregam conotação parecida, e merecem a mesma resposta. Nenhuma questão (ou crença) humana é de fato indiferente.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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