Intervenção alienígena e a mitologia do golpe

Apocalipse Now
26 nov 2022
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intervenção alienígena

 

Investigação conduzida pelo site Boatos.org mostrou que os bolsomínions reunidos em manifestação golpista nas capital gaúcha, acenando para o céu com celulares acesos na testa, não estavam pedindo ajuda do Imperador Palpatine ou de Kylo Ren para uma intervenção militar, e sim tentando encenar uma espécie de show de luzes para ser filmado por um drone.  

Perde-se a piada, mas o fato de a ideia de que o que se desejava lá era uma “intervenção alienígena” ter soado tão plausível para tanta gente (eu mesmo confesso que tuitei a respeito) mostra, primeiro, o modo como os manifestantes bolsonaristas parecem desconectados da realidade e, segundo, como a sociedade brasileira está ansiosa para encontrar desculpas para não ter de levar esse pessoal a sério. O riso diante da suposta “intervenção alienígena” é, antes de mais nada, um riso nervoso.

Mas insistir em erros confortáveis que tranquilizam é, sempre, um perigo. Ainda mais porque, mesmo se os bolsonaristas de Porto Alegre estivessem pedindo algo tão lunático quanto uma invasão Klingon, isso não bastaria para torná-los, e ao movimento que representam, automaticamente inofensivos. Como já escrevi num artigo anterior sobre falsos messias, absurdos, erros e fraudes são perfeitamente capazes de desencadear movimentos de massa e causar e gerar eventos históricos.

Grupos altamente motivados são capazes de produzir grandes impactos sociais – para o bem ou para o mal – e não há a menor necessidade de que a motivação por trás de suas ações faça sentido. Como Eric Hoffer (1902-1983) escreveu em seu clássico sobre fanatismo, “The True Beliver”, “todos os movimentos de massa geram, em seus aderentes, a sensação de que estão preparados para a morte e a vontade de agir; todos, independentemente da doutrina que pregam e do programa que projetam, semeiam fanatismo, entusiasmo, esperança fervente, ódio e intolerância; todos são capazes de liberar poderosas correntes de atividade em certos aspectos da vida; todos exigem fé cega e aliança exclusiva”.

Não há, a priori, nenhuma razão para excluir a crença na intervenção extraterrestre em assuntos humanos da lista de ideias fanatizantes, muito pelo contrário: basta lembrar daquela que talvez tenha sido a primeira tragédia transmitida pela internet, o suicídio coletivo dos 39 membros da seita americana Heaven’s Gate em março de 1997. Os seguires do casal Bonnie Nettles e  Marshall Applewhite tiraram as próprias vidas porque acreditavam que suas almas seriam recolhidas por um disco voador que viajava junto do cometa Hale-Bopp.

 

ETs no Capitólio

Falando mais especificamente sobre eleições e alienígenas, uma pesquisa de opinião conduzida na Louisiana, Estados Unidos, mostrou que “crença em visitantes extraterrestres” permitia prever, com razoável grau de confiança, que a pessoa acreditava também que Donald Trump tinha sido o verdadeiro vencedor do pleito presidencial de 2020.

Os responsáveis pela pesquisa, dois cientistas políticos, especulam que o elo entre crença em ETs presentes na Terra e em fraude eleitoral (ambas hipóteses para as quais não existe evidência) é a disposição em aceitar teorias de conspiração.

Aqui é sempre bom distinguir entre crença em conspirações específicas, algo que pode ser ou não racional, dependendo da evidência disponível (por exemplo, os atentados de 11/9 nos Estados Unidos foram resultado de uma conspiração da Al-Qaeda) e a ideia mais geral de “teorias da conspiração”, uma visão de mundo que tende, independentemente da evidência disponível e mesmo contrariando a melhor evidência, a considerar que conspirações são a melhor explicação para eventos complexos, surpreendentes ou desagradáveis.

Um estudo de maior fôlego, conduzido pelo também cientista político Joseph Uscinski, sugere que a proporção da população mundial que aceita teorias de conspiração é constante, contrariando a intuição de que o conspiracionismo vem crescendo nas sociedades ocidentais. Uscinski oferece a hipótese de que, em tempos mais recentes, líderes políticos e seus marqueteiros aprenderam a explorar melhor os cidadãos e eleitores predispostos à teoria da conspiração, criando discursos que mobilizam essas pessoas em favor de suas causas.

Em 2014, estudo publicado por pesquisadores alemães já indicava que “a mentalidade conspiratória tem todas as marcas de uma atitude política coerente e distinta” do mero autoritarismo de direita, e é fortemente influenciada por frustração e impotência. “Pensamento conspiratório pode ser um modo eficaz de lidar com uma identidade social negativa”, escrevem os autores, acrescentando que esse tipo de atitude costuma embutir um forte preconceito contra grupos vistos como poderosos ou em posição de autoridade.

O primeiro ponto – fantasias conspiratórias como forma de administrar uma imagem social ruim – pode explicar a radicalização dos negacionistas da urna eletrônica. À medida que as vozes oficiais da sociedade (grande imprensa, tribunais, poder econômico) empurram a pauta da turma “Brazil Was Stolen” para a margem e o ridículo, mais o pessoal que insiste em ficar ali precisa de ferramentas para lidar com o estigma social. Ver-se como vítima de uma conspiração cumpre a tarefa.

Já a questão do preconceito dá uma pista para entender a insistência dos ideólogos da extrema-direita em erigir espantalhos onipotentes e falsas ameaças – “marxismo cultural”, “ditadura gayzista”, “comunismo” – para assim disseminar sentimentos de inferioridade e insegurança em grupos objetivamente privilegiados, como setores da classe média alta, ou fazer com que pessoas que se identificam com maiorias de fato poderosas e influentes (como são os cristãos, tanto católicos quanto protestantes) tenham a falsa ideia de que essas identidades sofrem opressão, ou estão ameaças por algum perigo iminente.

É uma manobra de engenharia psicossocial que mereceria admiração, não fossem as consequências funestas que produz: pegar sentimentos de preconceito e aversão que, em tempos normais, sofrem forte pressão do corpo social para se manter no universo privado, porque manifestações públicas geram movimentos de repulsa (racismo, machismo, classismo, homofobia), e torná-los “aceitáveis” ao redefinir o grupo-alvo como "privilegiado", em alguma mitologia de conspiração.

 

Lembrando os reptilianos

No contexto da pandemia, mesmo promotores de teorias conspiratórias francamente absurdas viram-se normalizados: gente que defende que John F. Kennedy foi morto pela Máfia pelo menos tem como apresentar um verniz de plausibilidade (embora estejam errados), mas o que dizer de quem afirma que a Terra é governada por répteis do espaço?

Pois bem, o maior propagandista dessa ideia particular foi ovacionado numa das principais praças de Londres em 2020, durante uma passeata contra lockdown e máscaras. Aqui no Brasil, o deputado federal eleito e ex-secretário nacional de Cultura Mario Farias já se mostrou um entusiasta da cidade perdida de Ratanabá. Diante desses precedentes, intervenção extraterrestre parece quase uma proposta tímida.

Vale a pena notar que o universo dos óvnis e extraterrestres constrói uma ponte entre sentimento religioso (muita ufologia gira em torno da simples substituição de anjos e profetas por irmãos do espaço e mestres interplanetários) e a ideação conspiracionista, estabelecendo mais um canal de contaminação da política por preocupações esotéricas e escatológicas, e um canal especialmente insidioso, porque o conspiracionismo ufológico não se apresenta como uma denominação de fé.

Crenças esdrúxulas não são incompatíveis com articulação ou habilidade política. Adolf Hitler aqui seria o exemplo extremo. Golpismo, mesmo quando ridículo, ainda é golpismo.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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