Sexo e castigo

Apocalipse Now
30 jul 2022
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Eva e a maçã

 

Lá se vão uns trinta (quase quarenta) anos, um então vereador (hoje já falecido) de um município paulista propôs a criação de um retiro – vila, refúgio, aldeia – fora da zona urbana para acomodar os homossexuais e as prostitutas da cidade, a fim de conter a epidemia de aids.

Quando opositores do plano e as pessoas de bom-senso em geral sugeriram que a ideia equivalia a estabelecer um campo de concentração ou a retomar a trágica história dos leprosários paulistas, o nobre edil disse que estava sendo mal interpretado, o balão de ensaio estourou, nada veio daquilo.

Ainda assim, o projeto obteve apoio (envergonhado, à boca pequena, nas conversas de barbearia, no ponto de táxi, no balcão do bar) e seu criador foi reeleito.

A memória de situações como essa (e outras ainda piores) ajuda a explicar a reticência com que a varíola símia, ou monkeypox, ou varíola dos macacos, vem sendo tratada por agentes de saúde pública e pela mídia. Especificamente, ninguém parece muito bem saber o que fazer com o fato de que a doença encontrou um canal preferencial de disseminação entre homens que fazem sexo com homens, e que têm muitos parceiros.

À semelhança da varíola clássica, essa doença produz lesões na pele que parecem bolhas ou feridas. Ela se transmite de pessoa para pessoa pelo contato direto com as feridas, com secreções eliminadas pelas feridas, por fluidos corporais e por secreções respiratórias (saliva, muco nasal) durante contato físico próximo ou íntimo, e prolongado.

Até aí, parece uma doença feita para saltar entre namorados, durante os amassos ou em momento mais intensos – também, em certos tipos de atividade esportiva e, até, no contato próximo entre pais e filhos, principalmente crianças. E todas essas são mesmo, em princípio, situações de risco.

Mas essa versão da doença, que apareceu em 2017, tem um detalhe a mais: por alguma particularidade do vírus, as feridas da monkeypox tendem a se concentrar na boca, na região genital e próximas ao ânus. O que faz do sexo oral e anal uma modalidade de transmissão mais eficiente do que outras formas de intimidade física (que, ainda assim, vale lembrar, seguem sendo arriscadas). 

 

Estigma

Sabendo de tudo isso, nada mais lógico do que desenhar uma campanha de orientação voltada para a cultura na qual o sexo oral e o anal são práticas comuns – a dos homens que fazem sexo com homens –, alertando para que as pessoas prestem atenção ao próprio corpo e ao dos parceiros para detectar as lesões, caso apareçam, e também fiquem atentas para os demais sintomas (febre, dor de cabeça, nódulos linfáticos inchados, fadiga, garganta irritada, tosse). E, havendo vacinas, criar campanhas de vacinação pensadas, em termos de linguagem e direcionamento, para esse mesmo público.

Essa lógica é corroborada pelos fatos. Levantamento publicado há poucos dias no New England Journal of Medicine mostra que 98% das pessoas infectadas com monkeypox eram homens gays ou bissexuais; 41% estavam infectados com HIV; a principal suspeita de modo de transmissão, em 95% dos casos, era pela via sexual, sendo que 75% dos infectados apresentavam lesões na região anal-genital.

Então, por que não estamos vendo outdoors e anúncios na TV e em canais do YouTube com a mensagem “Atenção: Se você é um homem que tem o hábito de fazer sexo com outros homens, tome um cuidado especial com a monkeypox – aprenda a reconhecer os sintomas e vacine-se”?

(Claro, a existência de campanhas específicas não elimina a necessidade de campanhas para o público em geral – o vírus não vê preferência sexual, apenas se aproveita de certos tipos de contato físico. Mas a campanha específica, direcionada, tem mais chance de captar a atenção das pessoas para as quais a mensagem é, por ora, mais urgente.)

Basicamente, por causa do temor do que gente como o tal vereador falecido pode cismar de fazer.

Se trinta e poucos anos atrás esses caras estavam na periferia do poder e o apoio que recebiam era velado e envergonhado, hoje estão no centro – no Brasil e em outras partes do mundo; e onde não estão no controle, muitas vezes encontram-se perto o suficiente dele para influenciar políticas públicas. Também não têm mais vergonha, nem pruridos, de proclamar aos quatro ventos as atrocidades que gostariam de implementar, sabendo que parte da sociedade vai apoiá-los às claras e, outra, vai admirá-los por serem “politicamente incorretos” e “não ter papas na língua”.

Ao contrário do vereador falecido, a nova geração de autoritários ignorantes não recua diante do repúdio da opinião pública, mas dobra suas apostas.

Muitas vezes, a preocupação em “não estigmatizar” certos grupos sociais é vista apenas como uma forma de mostrar cuidado para com a sensibilidade desses grupos. Mas existe outra dimensão: a de não ativar preconceitos latentes, ou reforçar preconceitos explícitos, dirigidos contra eles.

 

É pecado, faz mal ou engorda

Em termos estritamente objetivos, a recomendação recente da Organização Mundial da Saúde para que homens que fazem sexo com homens busquem reduzir o número de parceiros, face à disseminação da monkeypox, não é mais “homofóbica” do que a recomendação para que igrejas evitem cultos presenciais, face à disseminação da COVID-19, era “cristofóbica”. Mas o ser humano não é estritamente objetivo – ainda mais quando há sexo na jogada.

Comentaristas religiosos e conservadores vivem carpindo o suposto hedonismo inconsequente do mundo moderno, mas a verdade é que a ideia geral de que não deve existir prazer sem punição ou gozo sem culpa (e nem culpa sem castigo) ainda é muito forte – e não apenas entre os conservadores. Desde sua materialização original com uma fruta saborosa, o conceito de pecado identifica-se não apenas com o eticamente condenável – matar, mentir, roubar – mas também com o fisicamente agradável. Numa interpretação caridosa, talvez a mensagem pretendida fosse “o mal pode ser tentador” (como em “cuidado com a sedução do lado sombrio, Luke...”), mas gerações de puritanos leram o inverso: se é tentador, deve ser mau.

O puritanismo derivado dessa identidade espúria entre o que dá prazer e o que é errado assume diversas formas: é uma área em que a criatividade humana floresce. Em geral, o que muda, de um grupo social (ou subcultura) para outro é o que conta como prazer “punível”. O mundo “espiritualizado” do bem-estar e da vida natural, por exemplo, tende a ver coisas como câncer e depressão como castigos impostos a quem come e bebe o que é “errado”.

Mas, graças a um condicionamento cultural de séculos, no Ocidente o prazer sexual está no topo da lista de gozos que “merecem castigo” ou que “devem ser evitados, porque senão...”. Esse condicionamento se manifesta das mais diversas maneiras – basta lembrar, por exemplo, de que uma das primeiras regras para sobreviver como personagem de um filme de terror é manter-se virgem.

Assim como a conexão entre pecado e maçã, a ligação entre pecado e doença é bíblica. Se o salário do pecado é a morte, ao longo da história doenças, principalmente infecciosas, sempre foram o principal meio de pagamento. A ideia de que o doente de algum modo fez por merecer sua doença não é apenas um preconceito religioso, mas está entranhada em muita ideologia moderna, incluindo diversos sabores da espiritualidade contemporânea (como já mencionei) e dos misticismos tipo “você cria sua realidade”.

Se, no contexto cultural vigente, o sexo ainda é o grande pecado e a doença, o castigo por excelência, uma doença nova, associada a certos hábitos sexuais, tem potencial cultural explosivo: não custa lembrar as resistências sofridas por campanhas de distribuição de camisinhas e, até, pela vacinação para HPV. Ainda mais, se os hábitos sexuais em questão já são especialmente malvistos por setores sociais cada vez mais influentes.

 

Mas daí...

Qualquer membro da espécie humana pode contrair monkeypox. No momento, há um grupo que apresenta uma vulnerabilidade ao contágio que ainda é maior do que a do restante da sociedade. Essas pessoas precisam ser avisadas disso, e informadas sobre os cuidados recomendados e as opções disponíveis.

O ideal seria que o aviso fosse formulado e disseminado de modo dirigido – usando a linguagem adequada e os canais certos, aqueles que têm maior probabilidade de chegar aos ouvidos de quem mais pode se beneficiar do conteúdo. Todo profissional de comunicação está familiarizado com o conceito de público-alvo: não se faz anúncio de luvas de boxe em revistas especializadas em sapatilhas de balé.

A preocupação de que o alerta não seja capturado e usado como arma por gente preconceituosa que acha que o prazer dos outros deve ser castigado é legítima e inquestionável, mas não elimina a necessidade de dar o aviso, e de fazê-lo chegar a quem importa. Há uma diferença entre devido cuidado e medo paralisante (como também há diferença entre alerta necessário e proclamação desastrada, como foi a da OMS).

No longo prazo, o melhor é desfazer esses nós culturais que amarram sexo e doença à ideia de pecado e castigo. Seria o fim não só da homofobia, mas de um monte de outros problemas.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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