Coisas estranhas que caem do céu

Apocalipse Now
9 jul 2022
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“Chuvas” de animais e de outros corpos estranhos que caem do céu sem explicação aparente têm sido registradas esporadicamente ao longo da história. Em sua “História Natural”, obra clássica, precursora das modernas enciclopédias, Plínio, o Velho (que morreu no ano 79, durante a erupção do Monte Vesúvio) anota que fontes disponíveis em seu tempo relatavam “chuvas de leite, sangue, carne, ferro, lã e ladrilhos”. Um livro de ciências para jovens, publicado em Londres em 1870, tratava de “chuvas de insetos, peixes e lagartos”.

Eventos assim são raros e difíceis de investigar, ou mesmo confirmar – muitas vezes, só o que se têm são relatos de testemunhas, que podem, muito bem, estar enganadas sobre o que acreditam ter visto. O jornalista americano Charles Fort (1874-1932) colecionou incontáveis relatos de chuvas estranhas – de sapos e peixes a pingos de líquidos estranhos (“chuvas negras”, “chuvas amarelas”, “chuvas vermelhas”), passando por munição de armas de fogo (!!) caindo do céu, ou dentro de ambientes fechados, sem causa evidente. Escreve ele em seu “Livro dos Danados”, citando um recorte de jornal de San Francisco:

“O gabinete do promotor do condado aqui está aturdido pelo maior mistério de sua história. Há dias que uma chuva de munição de caça, em intervalos, cai no escritório da garagem Newton, um aposento pequeno, com uma porta e uma janela. Não há marcas nas paredes ou no teto, e não há buracos no escritório por onde o chumbo poderia entrar”.

Fort tinha uma visão bastante negativa da ciência – para ele, os cientistas estavam muito mais preocupados em agir como uma espécie de Inquisição secular, sustentando uma visão “ortodoxa” da realidade, do que em realmente investigar fenômenos de forma honesta. Ele, de certa forma, é o pai espiritual de todas as teorias de conspiração e mitologias em torno dos “homens de preto” que silenciam testemunhas e escondem evidências inconvenientes.

Por conta disso, Fort via os relatos de chuvas estranhas como rachaduras na armadura da ortodoxia, e incluía esses eventos em sua lista, aparentemente interminável, de “evidências malditas” (ou “danadas”) – ocorrências que, segundo ele, a ciência preferia “banir” da realidade, porque uma investigação séria poria a “ortodoxia” em risco.

Ele era um onívoro: suas listas incluem desde enigmas legítimos a mal-entendidos, fraudes e brincadeiras de mau gosto (a explicação mais provável para o drama da garagem do pobre Newton). Se o fenômeno estava registrado em algum lugar, Fort o incluía. Sua fonte preferencial era a imprensa, e isso numa época em que os jornais não se furtavam a inventar lorotas para estimular a circulação.

 

Eventos únicos

Existem, claro, diversas razões perfeitamente legítimas, e nada sinistras, para o fato de cientistas não se dedicarem a explicar o como e o porquê de sapos, peixes ou gosma vermelha caírem de vez em quando do céu. Uma delas é que cada um desses acontecimentos é, em toda probabilidade, único, o resultado de uma cadeia de eventos particular, que talvez jamais volte a se repetir, e cujos elos desaparecem depressa ou são difíceis de rastrear.

Isso significa que, primeiro, não existe uma explicação sistêmica para chuvas misteriosas – uma “grande teoria” capaz de dar conta de todas elas e que pode ser testada e usada para prever quando a próxima vai acontecer. Segundo, que qualquer explicação será sempre tentativa: a única forma de testar uma hipótese sobre a causa de uma chuva (de sapos, digamos) específica é voltando no tempo e conferindo exatamente como aquela chuva aconteceu. O que é impossível.

Trata-se de uma peculiaridade que faz com que até as melhores hipóteses possam ser contestadas, às vezes por alternativas muito menos plausíveis. Por exemplo, em 2001 uma chuva vermelha (“de sangue”) caiu sobre partes do estado de Kerala, na Índia, e a coloração foi explicada como resultado da presença de esporos de algas do gênero Trentepohlia, uma hipótese perfeitamente razoável e compatível com as amostras encontradas – o que não impediu que surgissem versões alternativas apelando para origens extraterrestres, defendidas mesmo diante de evidência química de origem local.

Algumas explicações de caráter um pouco mais sistêmico às vezes aparecem – tornados e trombas d’água que arrancam animais e plantas da superfície, ventos que transportam grãos de areia ou outras partículas que acabam “tingindo” a chuva comum –, mas nenhuma delas é capaz de dar conta de todos os fenômenos. Assim como os crimes que aparecem em livros de mistério ou séries de TV, chuvas misteriosas tendem a ser eventos únicos que requerem investigação individualizada, e os recursos à disposição dos cientistas e instituições de pesquisa são limitados.

 

Peixes sobre o Texas

Isso não significa que às vezes não surjam, como no caso da chuva vermelha indiana, ótimas hipóteses, com apoio sólido em evidências, mas essas hipóteses dependem mais das pistas que a natureza deixa do que da boa vontade dos pesquisadores. Da sorte, enfim. E a sorte parece ter sorrido para os investigadores de uma chuva de peixes que caiu, no fim do ano passado, sobe a cidade de Texarkana, no estado do Texas, Estados Unidos.

Esta chuva já foi histórica por ter sido a primeira precipitação de peixes captada por câmeras – no caso, câmeras de segurança de empresas do município. Existem, portanto, imagens registradas de peixes caindo do céu, em meio à tempestade de granizo que atingiu Texarkana a partir das 16h18 de 29 de dezembro de 2021.

A investigação que encontrou os vídeos e acabou sugerindo uma explicação sensacional – mas perfeitamente natural – para o evento foi publicada, ironicamente, na edição mais recente da revista britânica Fortean Times, tradicional publicação dedicada a evento anômalos e ocorrências bizarras, batizada em homenagem a Charles Fort.

E qual explicação é essa? O vômito de cormorões. Essas são aves que se alimentam de peixes e que tendem a regurgitar, ou vomitar, quando estão estressados. Talvez, pegos pela tempestade de granizo em pleno voo, os pássaros tenham reagido liberando os restos de alguma refeição recente sobre a cidade.

Os autores do artigo na Fortean Times notam que muitos dos peixes coletados pelos moradores após a tempestade pareciam estar parcialmente digeridos, e não tinham cabeça (aves que se alimentam de peixe tendem a engolir suas presas começando pela cabeça). Além disso, diz o artigo, “uma foto mostra muitos peixes amassados juntos num aglomerado, como se tivessem passado por uma garganta”.

Entrevistado, o administrador de um aeroporto local disse que bandos numerosos de cormorões foram vistos antes e depois da tempestade. Além disso, os autores citam o caso de uma “chuva de peixes” causada por cormorões na Holanda, ocorrida em fevereiro deste ano.

 

Anomalias

Como na maioria dos eventos anômalos, no entanto, a única forma de saber se a explicação proposta em Fortean Times está correta é voltando ao passado. Os autores notam que não existe observação direta de cormorões regurgitando durante o voo, o que enfraquece a hipótese, mas esperam que amostras de peixe coletadas após a tempestade sejam analisadas para a presença de DNA de aves – a análise, no entanto, depende da disponibilidade de verba.

A tecnologia moderna permite não apenas registrar chuvas anômalas (os vídeos de segurança mostrando peixes caindo do céu) e investigá-las (o teste de DNA que talvez venha a ser feito), mas também criá-las – como no caso da chuva de fezes lançada por um drone, ao que parece controlado por um típico “cidadão de bem”, sobre apoiadores da candidatura de Lula à Presidência.

Charles Fort registra vários casos de chuvas fétidas – Irlanda, 1849 e 1907; Estados Unidos, 1819 (após “um som como uma explosão” no céu); África do Sul, 1838, e muitos outros exemplos. No Brasil, no entanto,  esse tipo de fenômeno parece estar se popularizando no presente século, como consequência direta (no caso do drone) ou indireta (como se registra aqui) da bolsonarite aguda que assola o país.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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