O sobrenatural, o social e a memória

Apocalipse Now
13 nov 2021
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Uma dificuldade recorrente do jornalismo brasileiro em lidar com o caso João de Deus — algo que aflige tanto os tratamentos mais competentes do escândalo, quanto os mais ineptos — é encontrar uma forma clara e objetiva de lidar com as supostas “curas” e outros efeitos “milagrosos” praticados pelo homem que talvez seja o maior estuprador e abusador sexual em série da história. A tentação de sair pela tangente, tratando a natureza exata das façanhas atribuídas ao goiano João Teixeira de Faria como um “mistério” ou, pior, abraçando por completo a versão mágica, sobrenatural, está sempre à espreita.

Se por um lado é verdade que, do ponto de vista estritamente lógico, a hipótese de que pelo menos algumas das “curas” atribuídas ao médium de Abadiânia teriam sido fruto de forças do Além jamais poderá ser totalmente descartada, também é verdade que, do mesmíssimo ponto de vista, não podemos descartar por completo a hipótese de a Terra ser plana e o céu não passar de um holograma projetado sobre nossas cabeças; ou de sermos todos cérebros mantidos em jarros, vivendo uma vida de realidade virtual. Mas nem por isso a imprensa cai no erro de dar o benefício da dúvida a terraplanistas, ou de pôr toda a realidade física entre parênteses.

A complacência que faz com que o cardápio manjado de truques circenses, platitudes de livrinho de autoajuda e sugestão psicológica servido por João de Deus (bem como os erros de atribuição e percepção de causalidade que levam as pessoas a inferir, equivocadamente, que qualquer mudança que venham a experimentar durante ou após a intervenção “espiritual” foi produzida ali) seja tratado como “mistério” até mesmo pela mídia que se pretende responsável é, em parte, explicada pelo desejo de não melindrar a vaidade dos narcisos espiritualizados que se acreditam “tocados” pelo poder mediúnico.

Também colabora a aceitação social difusa da ideia de que “cura espiritual” é uma categoria cuja materialidade ainda se encontra sub-judice, que merece o benefício da dúvida, uma aceitação de que outras doutrinas equivalentes em termos de lógica e evidência, como o terraplanismo ou a hipótese dos cérebros-em-jarros, não gozam.

 

 

Fragilidade mental

Existe ainda um outro fator que acaba inibindo a denúncia cabal das pseudo-façanhas do médium: o acúmulo de relatos pessoais sinceros de eventos “impossíveis”. Este é um problema que assombra (trocadilho inevitável) a pesquisa sobre fenômenos ditos espirituais ou paranormais desde o século 19: testemunhos sinceros e honestos, feitos por observadores competentes, de eventos que, da forma como são descritos, seriam impossíveis ou incompatíveis com as leis mais sólidas da física, da química ou da biologia.

Claro, se algo é impossível da forma como foi descrito, o primeiro passo racional e prudente — antes de admitir intervenção divina, paranormal, extraterrestre ou interdimensional — é questionar a descrição apresentada. Relatos de eventos resultam de uma articulação entre percepção e memória, e o problema pode estar em qualquer um desses dois elementos, ou em ambos.

A maioria das pessoas tende a enfatizar a possibilidade de erros de percepção: o que vemos talvez não corresponda exatamente aos fatos. A bola na verdade não desapareceu, ela está na outra mão do mágico, a que ficou fechada, ou escorregou para a manga de seu paletó. Mas, e se ele realizou o truque sem camisa, e abriu as duas mãos ao mesmo tempo?

A possibilidade de erros de memória tende a ser minimizada — de fato, muitas pessoas reagem de modo indignado à mera sugestão de que talvez não estejam se recordando corretamente de um acontecimento, ou série de acontecimentos. Levantar a possibilidade de falhas de memória pode ser visto como uma acusação velada (às vezes, nem tanto) de doença ou incompetência mental.

 

 

Erros comuns

Mas a verdade é que a memória erra, e erra muito. Para nossa sorte e felicidade, em geral são erros pouco relevantes, envolvendo detalhes desimportantes e que não interferem no “sentido geral” do que está sendo recordado: você pode se lembrar corretamente de ter ganhado uma dúzia de rosas e de que elas eram vermelhas, mas talvez não se recorde corretamente da cor do papel em que estavam embrulhadas.

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Isso acontece porque, quando evocamos uma memória, na verdade não evocamos sons e imagens de alguma central de videoteipe embutida no cérebro, mas reconstruímos a experiência, preenchendo eventuais lacunas com deduções, imaginação e, às vezes, até com memórias de eventos semelhantes, ou conectados por alguma relação simbólica. Tudo isso, colorido por nossas próprias expectativas e pelo significado que atribuímos ao evento.

Em 1887, uma dupla de investigadores “psíquicos” — na época, a alcunha dada a cientistas que exploravam fenômenos atribuídos a espíritos — Richard Hodgson (1855-1905) e Samuel John Davey (1863-1890) demonstraram que muitas pessoas tendem a recordar eventos supostamente mediúnicos com erros de memória que recheiam os relatos com “impossibilidades”, na verdade, inexistentes.

Davey, um mágico habilidoso, conduziu uma série de “sessões espíritas” com um tipo de manifestação física popular no século 19: textos, ostensivamente escritos por fantasmas, aparecendo em pequenas lousas em branco. Cada passo de cada sessão, cada etapa de cada truque envolvido na produção das manifestações, foi cuidadosamente anotado. Depois, pediu-se que os participantes descrevessem, por escrito, o que tinham visto.

Muitas das descrições não só omitiam eventos cruciais para a correta interpretação dos fatos — por exemplo, as vezes em que Davey punha a lousa em branco no próprio colo ou debaixo da mesa (quando ele a substituía por uma contendo mensagens pré-fabricadas do “outro mundo”), como fantasiavam eventos que não tinham acontecido (escrita fantasmagórica aparecendo em lousas que Davey não havia tocado).

Em sua introdução ao relato do experimento, Hodgson faz uma lista das distorções da memória que ajudam a tornar um evento ordinário, quando relembrado, “impossível” ou “maravilhoso”: interpolação (uma lembrança fantasiosa se introduz no relato); substituição (um evento é descrito de modo incorreto ou trocado por outro, semelhante, mas imaginário); transposição (alguns dos eventos são relembrados fora de ordem); e omissão (detalhes importantes não são lembrados).

O autor também chama atenção para o poder das predisposições e expectativas, mencionando “a distorção não-deliberada da evidência que emerge do desejo de justificar a adoção de uma nova fé” e do “desejo de fortalecer as bases de uma convicção já formada”.

 

Testemunhas

Então, como lidar com relatos pessoais de lembranças vívidas de ocorrências mágicas, impossíveis, maravilhosas — “espirituais” — invocados em defesa da hipótese de que os supostos poderes de João Teixeira de Faria são, em certa medida, inexplicáveis e, por isso, devem ser relegados à categoria de “mistério” e merecem o “benefício da dúvida”?

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Sugiro que reconhecendo que os relatos podem muito bem ser sinceros, honestos e muito provavelmente vêm de pessoas inteligentes e em pleno gozo de suas faculdades mentais. E acrescentando que nada disso prova o que quer que seja, e muito menos abre caminho para, sob o disfarce de “mistério” ou “dúvida”, lançar-se mão da falácia do apelo à ignorância (“ninguém jamais explicou o que fez aquela árvore balançar, logo pode muito bem ter sido um elefante cor-de-rosa voador invisível”).

O trabalho de Hodgson e Davey foi publicado em Proceedings of the Society for Psychical Research (vol. 4, 1887). O que ele mostra sobre a vulnerabilidade de nossas lembranças a expectativas e desatenção já foi confirmado em vários outros estudos, conduzidos ao longo de mais de um século. Por exemplo, em 2003 o psicólogo Richard Wiseman publicou artigo indicando que algumas pessoas deixavam-se convencer de que uma mesa flutuava durante uma sessão espírita apenas porque o médium havia dito que ela estava flutuando (a mesa na verdade nunca se moveu).

Jamais teremos certeza absoluta de que todas as alegações, desacompanhadas de evidência física, de eventos aparentemente impossíveis ou sobrenaturais são, excluídos os casos de fraude pura e simples, resultado de falhas de percepção ou memória. Mas é uma questão de sopesar níveis de plausibilidade: também jamais teremos certeza absoluta de que não somos cérebros em jarros. Ou de que as árvores não balançam sob o peso de elefantes invisíveis.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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