A obsessão da pseudociência com “verdadeiras causas”

Apocalipse Now
23 ago 2020
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dominós

 

Semana passada recebemos correspondência de algumas pessoas infelizes com nossa abordagem a respeito de três diferentes modalidades terapêuticas (florais, homeopatia, psicanálise) oferecendo exatamente a mesma linha de argumento: as terapias convencionais — isto é, aquelas baseadas em evidência verificável — não atacam a “verdadeira causa” dos problemas enfrentados pelos pacientes. As terapias amadas pelos nossos críticos, é claro, vão direto às raízes, ao coração selvagem das coisas.

Essa recorrência do tema das “verdadeiras causas” no discurso de defesa das terapias pseudocientíficas é algo que merece uma investigação antropológica em profundidade. Um dia, alguém vai tirar um doutorado disso. Enquanto esse momento de glória não chega, porém, nada me impede de jogar um pouco de conversa fora a respeito.

O conceito de “causa” tem um longo pedigree filosófico, recheado de problemas e aparentes paradoxos. Aristóteles (384-322 AEC) falava em quatro tipos de causa, material (a madeira de que um banquinho é feito), formal (o projeto que o marceneiro segue, ou a ideia de “banquinho” que ele tem na cabeça), eficiente (quem age para produzir o efeito, no caso, o marceneiro em si) e final (a finalidade do que é causado, “a que aquilo serve” — no caso, sentar-se).

A análise aristotélica sofre do defeito de ser teleológica, isto é, de pressupor que todas as coisas são feitas por alguém, a partir de uma ideia, com algum propósito. Esses são pressupostos naturais sob o olhar humano (cada um de nós é um primata cuja sobrevivência depende de detectar corretamente os planos e intenções dos outros primatas a nosso redor), mas de aplicação limitada para o resto do Universo.

 

Fala que eu te escuto

A lógica também nunca foi capaz de capturar a ideia de “causa” de modo adequado (a palavra “causa” sequer aparece no “Dicionário de Lógica da Universidade de Oxford!). A chamada implicação material (“Se X, então Y), parece resumir bem a relação de causa e efeito, mas bastam alguns poucos exemplos para desfazer essa falsa impressão. Digamos: “se as roupas estão jogadas no chão, o quarto está desarrumado”. As roupas jogadas certamente não “causaram” o caos do quarto.

O pensamento moderno sobre causalidade (como encontrado, por exemplo, no trabalho do filósofo e cientista da computação Judea Pearl) tende a favorecer metáforas auditivas: “pense em causação como um modo de escutar”, escrevem Pearl e colegas em Causal Inferences in Statistics. “X é uma causa de Y se Y ouve X e decide seu valor com base no que escuta”.

Essa visão tem as vantagens de oferecer um certo conforto intuitivo, e também de abrir caminho para uma multiplicidade de fatores (o mesmo efeito pode “dar atenção” a diferentes causas) que é menos rígida do que o modelo de Aristóteles, onde cada causa (material, formal, etc.) tem um papel específico.

O que nem Aristóteles e nem Pearl nos ajudam a encontrar é a tal “verdadeira” causa disso ou daquilo. Exceto, isto é, por um processo de eliminação: os dois sistemas permitem excluir causas falsas. Marfim não é uma causa material do banquinho de madeira, e W não é uma causa de Y, se Y permanece o mesmo não importa o quanto W grite e esperneie.

Talvez possamos substituir o conceito de “verdadeira” por “principal”? Outro filósofo, John Stuart Mill (1806-1873), propôs, para detectar causas, o “método das semelhanças” e o “método das diferenças”: se uma série de processos diferentes leva a resultados semelhantes, o pouco que existir de semelhante entre os processos deve conter a causa da semelhança dos resultados. Inversamente, se uma série de eventos semelhantes leva a resultados divergentes, o que há de diverso entre eles deve ser a causa das divergências.

Disso tudo, dá para extrair o critério da estabilidade sob manipulação: variam-se os vários candidatos a causa, seguidas vezes, mantendo cada um fixo a cada vez, e vê-se como isso altera o efeito. Se apenas um desses candidatos, mantido estável enquanto todo o resto muda, bastar para manter o efeito praticamente intacto, poderemos chamá-lo de “causa principal” (ou, vá lá, “verdadeira”).

 

Medicina

Cerca de cem anos antes de Aristóteles, Hipócrates (460-370 AEC) ou, mais provavelmente, um dos vários autores do chamado Corpus Hipocrático, registrou, no tratado Tradição Em Medicina, um ataque às práticas médicas tradicionais de sua época, tidas por ele como ineficientes e supersticiosas (pra gente ver que esse é um trabalho que não acaba nunca), a seguinte definição: “Devemos, portanto, considerar as causas de cada condição como sendo aquelas coisas que são de tal modo que, quando presentes, a condição necessariamente ocorre, mas quando mudam para outro arranjo, ela desaparece”.

O que soa bastante parecido com o método das semelhanças de Mill, ou o critério da estabilidade sob manipulação. Mas essas são exatamente as “causas” sobre as quais as práticas terapêuticas baseadas em evidências se debruçam: os testes clínicos controlados e randomizados (RCTs) são, no fim, implementações sofisticadas dos métodos de Mill. O princípio hipocrático de que causas são “de tal modo que, quando presentes, a condição necessariamente ocorre” praticamente prefigura os Postulados de Koch, conjunto clássico de critérios usado para vincular um microrganismo a uma doença.

Ao longo do século 20, esses critérios foram até ampliados para incluir relações probabilísticas, tornando-se menos reféns de uma visão determinista rígida, e o trabalho de Pearl e colegas, com diagramas causais que expõem graficamente as relações de “audição” entre variáveis, abriu espaço para análises ainda mais complexas, permitindo encaixar as contribuições parciais de causas diversas na produção de um mesmo efeito.

Hoje em dia, podemos falar em causa probabilística (X aumenta a chance de Y), causa suficiente (X garante Y) e causa necessária (sem X, nada de Y).

Que espaço, então, resta para as tais “verdadeiras causas” que não estariam sendo cobertas (ou descobertas) pelos métodos da medicina baseada em evidências, pela psiquiatria ou pela psicologia comportamental?

 

Regressão infinita

Um caminho que o pensamento causal abre, se não formos cuidadosos, é o da regressão infinita: o microrganismo causa a doença? Mas o que causa o microrganismo? Ou, o que causa a suscetibilidade do corpo ao microrganismo — por que algumas pessoas ficam doentes e outras não?

Essa regressão abre caminho para questões legítimas, mas como qualquer um que já tenha se metido com metafísica ou teologia poderá dizer, também deixa uma avenida livre para muita fantasia: a tentação de tapar buracos explicativos (reais ou inventados) com rolhas imaginárias é forte e está muito bem documentada na riqueza das mitologias da espécie humana.

Curiosamente, várias advertências contra a especulação estéril a respeito das “verdadeiras causas” das doenças foram feitas pelo pai da homeopatia, Samuel Hahnemann (1755-1843). “É impossível adivinhar a natureza essencial interna das doenças e as mudanças que elas produzem nas partes ocultas do corpo, e é um absurdo organizar um sistema de tratamento em cima de tais conjecturas e presunções hipotéticas”, escreve ele no ensaio “Espírito da Doutrina Médica Homeopática”.

Logo em seguida, claro, Hahnemann se põe a fazer o que havia declarado “absurdo” um parágrafo antes. Basicamente, as alterações físicas causadas pela doença seriam efeitos de segunda ordem, reverberações provocadas por “causas essenciais” que agem “de uma maneira dinâmica, muito similar à espiritual”, e “primeiro desequilibram os órgãos de um nível mais alto e da força vital”.

Se a ideia de “órgãos da força vital” trouxe à sua mente a imagem de um fantasma de filme de terror aberto na mesa de anatomia, não se sinta mal. O debate entre os exegetas espíritas e não-espíritas de Hahnemann sobre o significado exato dessa passagem pode ser um bom esporte de espectador, mas requer estômago forte e flexibilidade epistêmica.

 

Rolha imaginária

Mas a questão é: que razão teríamos para aceitar essas “causas essenciais” hahnemannianas? Basicamente, as mesmas que teríamos para engolir o inconsciente psicodinâmico, a “verdadeira causa” da banda freudiana, para quem o “problema real” do paciente é o conteúdo reprimido no inconsciente.

Só que esse suposto “problema real" tem tanta substância quanto os “órgãos de um nível mais alto e da força vital”. Assim como eles, são fruto da imaginação do terapeuta, projetada sobre a vida e a saúde do paciente — ou um mito construído colaborativamente entre ambos.

Uma característica notável, e comum, das diversas “causas reais” pseudocientíficas é que elas nunca são substituídas pelas causas descobertas pela ciência, mas apenas empurradas para níveis cada vez mais profundos: quando falseadas pelos fatos, não são abandonadas. Pelo contrário: tornam-se “ainda mais reais”.

Assim, quando surge evidência incontestável de que doenças são causadas por germes, o “desequilíbrio da força vital” passa a ser a causa da suscetibilidade aos germes. Quando algum sofrimento mental é rastreado a certos padrões de comportamento ou desarranjo bioquímico, a “pulsão inconsciente” torna-se a causa do padrão, ou do desarranjo.

A regressão infinita das causas garante que a rolha imaginária sempre terá um buraco novo para tapar.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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