A política da pseudoarqueologia

Apocalipse Now
25 jul 2020
Autor
Crânio deformado peruano

 

Quando um grupo internacional de pesquisadores anunciou há alguns anos, no periódico PLoS ONE, a descoberta de restos humanos com crânios alongados numa caverna da Europa Oriental, ninguém veio a público defender que se tratava de alienígenas como os que aparecem, por exemplo, no filme Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal. A análise científica – de que eram adolescentes de culturas que praticavam deformação craniana como forma de demarcação tribal – não causou polêmica ou ruído no mundo da arqueologia “alternativa”, ou pseudoarqueologia.

Se esses crânios tivessem sido descobertos nas Américas ou na África, no entanto, a história, muito provavelmente, teria sido outra. Há anos, por exemplo, que circulam especulações de que os crânios de Paracas – descobertos, em 1928, pelo arqueólogo peruano Julio Cesar Trello – seriam vestígios de humanoides extraterrestres. Em 2017, um grupo de supostas “múmias alienígenas”, também de procedência peruana, foi a principal atração de uma série do canal online Gaia, uma espécie de Netflix das pseudociências.

Nenhuma das alegações sobrevive ao mais leve escrutínio crítico: os crânios alongados pertencem a indivíduos da chamada Cultura de Paracas, um grupo humano pré-histórico já amplamente estudado. “A Cultura da Necrópole de Paracas não é o produto de um grupo misterioso e isolado de criaturas não-humanas”, resume o arqueólogo britânico Keith Fitzpatrick-Matthews, em seu site Bad Archaeology. “Sua posição no cenário do desenvolvimento do Peru pré-histórico é bem compreendida”.

Modificação corporal é algo praticado por povos de todo o mundo em todos os tempos. As mudanças podem ser discretas, como furos para brincos nas orelhas, ou vistosas, como grandes tatuagens coloridas.

Deformação artificial do crânio é apenas mais uma modalidade, na qual o desenvolvimento natural da cabeça é alterado pela aplicação de força – exercida por faixas de tecido, pedaços de madeira ou outros implementos. O fato de culturas separadas por continentes ou oceanos acabarem adotando modificações semelhantes não deveria ser mais surpreendente do que o uso quase universal de adornos como colares e anéis.

Quanto às múmias do canal Gaia, elas são montagens feitas a partir de restos humanos reais, provavelmente saqueados de um sítio arqueológico legítimo na região peruana de Nazca (onde se encontram ainda as famosas “linhas”, outro artefato criado por povos nativos e explorado por promotores da tese dos “deuses alienígenas”).

 

Racismo

Vestígios de visitantes alienígenas, como crânios ou múmias, são um corolário da ideia de que povos “incivilizados” ou “primitivos” – do ponto de vista europeu – seriam incapazes de construir monumentos ou estabelecer uma ordem social sem a ajuda de estrangeiros “superiores”. É por isso que crânios humanos modificados, quando encontrados na Europa, são apenas crânios humanos modificados.

Antes de ser engolida pelos extraterrestres do passado, a pseudoarqueologia racista costumava basear-se numa visão difusionista da História: em sua versão mais radical, o difusionismo propõe que ideias e tecnologias surgem apenas uma vez no caminho da Humanidade e difundem-se, a partir do ponto de origem, para outros locais e povos. Ao longo do período colonial brasileiro (1500-1822), não era incomum que certas formações naturais, ou mesmo alguns costumes indígenas, fossem interpretadas como resultado de “influência fenícia”, por exemplo.

Misturando-se, no fim do século 19, à (in)compreensão popular da teoria darwinista da evolução, ao racismo institucionalizado e à visão cíclica da História proposta por correntes místicas como a teosofia, em que civilização e barbárie alternam-se ao longo dos milênios, o difusionismo gerou uma mitologia de raças superiores que ou estabelecem colônias distantes de seu ponto de origem, ou comunicam seu conhecimento a povos inferiores e, ao fim e ao cabo, indignos.

O berço dessas hipotéticas super-raças – quase sempre, de pele branca – seria um continente perdido (como a Atlântida) ou algum rincão inacessível da Ásia. O apelo ao difusionismo também ajudou as sociedades de matriz europeia implantadas no Novo Mundo a estabelecer mitos identitários próprios, após os processos de independência.

No Brasil, o melhor exemplo talvez seja o chamado Documento 512 da Biblioteca Nacional. Supostamente escrito na década de 1750, mas só vindo a público em 1839 (dezessete anos após a independência, portanto), ele narra a descoberta, por um grupo de bandeirantes, dos vestígios de uma civilização perdida no interior da Bahia.

Como relata o historiador Johnni Langer em artigo publicado na Revista Brasileira de História, a mera possibilidade de o Brasil ter abrigado um povo "avançado" de possível extração greco-romana – a descrição da cidade perdida inclui pórticos e estátuas com coroas de louros – causou entusiasmo na elite brasileira.

Escreve Langer: "Ao início da formação do novo império, a elite intelectual já demonstrava um interesse objetivo em vincular vestígios monumentais com o reinado de D. Pedro II. E essas tão almejadas ruínas poderiam simbolizar a perenidade da nação brasileira. Ao mesmo tempo, rompendo a nossa vinculação histórica com Portugal, ao demonstrar que outras civilizações europeias estiveram em nosso solo muito tempo antes".

 

Virando o jogo

O uso do difusionismo como motor de orgulho étnico não se restringe aos “arianos” da Europa (ou América do Sul) Vitoriana e do pré-Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, aparece na formulação da tese da “Atena Negra” ou do “Legado Roubado” – a ideia de que toda a base da civilização ocidental (entendida como a filosofia e a matemática dos gregos antigos) foi “roubada” do Egito que, de acordo com a tese, teria sido povoado predominantemente por negros.

Ambas são proposições pseudocientíficas: há quem diga que Aristóteles (384-322 AEC) "roubou" sua filosofia da Biblioteca de Alexandria, o que é uma impossibilidade cronológica, já que a biblioteca foi estabelecida 200 anos após morte do filósofo (a cidade de Alexandria foi fundada por Alexandre da Macedônia, de quem Aristóteles foi professor, cerca de dez anos antes da morte do filósofo). Curiosamente, a ideia do Egito como fonte de toda a sabedoria do mundo é um mito europeu, difundido originalmente por autores gregos como Heródoto (484-425 AEC) e Platão (423-348 AEC), e depois retomado pelos místicos e esotéricos franceses dos século 18 e 19.

Quem quiser mais informação a respeito da insustentabilidade da tese do “Legado Roubado” pode encontrar um bom capítulo a respeito no livro “Archaeological Fantasies”, organizado por Garrett Fagan, e no tratado “The Secret Lore of Egypt”, de Erik Hornung.

Recentemente, na Índia, tem ganhado corpo um movimento que busca interpretar a menção a armas e veículos fantásticos nos textos épicos antigos como evidência de que os indianos do passado dominavam tecnologias que vão da propulsão nuclear à engenharia genética.

Em sua “Encyclopedia of Dubious Archaeology”, Kenneth L. Feder resume bem a situação: “Afrocentrismo é tão errado quanto eurocentrismo ou qualquer outro ‘centrismo’ que se queira inventar. Todas as regiões do mundo desenvolveram culturas que foram, cada uma à sua maneira, sofisticadas e elaboradas (...) nunca houve um único ‘povo genial’”.

 

Ponto de vista

Curiosamente, comentaristas europeus, como Erich Von Daniken, que também encaram os épicos hindus como relatos históricos quase-literais, preferem atribuir as super-tecnologias a povos alienígenas, não aos indianos antigos. Von Daniken é, claro, o decano da tese de que os monumentos incas, maias, astecas, egípcios, etc., foram construídos com ajuda, ou sob inspiração, extraterrestre.

No fim, teses sobre “deuses astronautas” ou “alienígenas do passado” são apenas o velho difusionismo racista, só que ampliado a uma escala galáctica.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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