Qual a responsabilidade das redes sociais?

Apocalipse Now
16 mai 2020
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teclado em sépia

Como serviço e atividade econômica, uma rede social é mais como uma companhia elétrica, os Correios ou um jornal? As analogias podem soar estranhas, mas são praticamente as mesmas que marcaram o debate sobre a responsabilidade dos provedores de acesso à internet, e dos serviços de hospedagem de sites, logo após a abertura da rede para o grande público, em 1994.

Ser equiparado a um serviço como água, gás ou eletricidade — uma utility, como se diz em inglês — era o sonho dos provedores de vinte e tantos anos atrás, como ainda parece ser o das redes. Uma característica marcante das utilities é que o fornecedor não tem responsabilidade nenhuma sobre o uso final de seu produto. Não é culpa da companhia elétrica se sua corrente é usada por um serial killer para torturar as vítimas, ou por um cientista louco para criar um raio da morte.

O provedor de uma utility tem responsabilidades com a estabilidade, a confiabilidade e a segurança do produto, e pouco mais. Eventualmente, pode ser chamado a colaborar com as autoridades — por exemplo, cortando a energia do laboratório do cientista louco, antes que o raio da morte seja ativado —, mas essas são ocasiões excepcionais e requerem a movimentação do maquinário judicial.

Nesse enquadramento, a responsabilidade das redes sociais se limitaria ao aspecto técnico (estabilidade e confiabilidade), à proteção da privacidade (segurança) e a obedecer a ordens judiciais para remover certos conteúdos ilegais (cortar o streaming da câmara de horrores do serial killer, por exemplo).

Mas o que circula pelas redes é muito mais do que eletricidade, é conteúdo: textos, imagens, áudios, vídeos. E se você publica conteúdo, em tese surge o fantasma da responsabilidade editorial: de ser chamado a responder — legal ou moralmente — por aquilo que sua plataforma dissemina.

Ao contrário da companhia elétrica, que é indiferente aos efeitos da corrente que produz sobre o consumidor final (se o cara vai enfiar o dedo na tomada ou ligar uma serra elétrica para picotar cadáveres, não é problema da empresa), uma firma jornalística não tem como ser indiferente aos efeitos do que aparece em suas páginas. Ela responde pelo impacto das informações falsas ou sensacionalistas que distribui; no mínimo, em termos de imagem e reputação, mas também judicialmente. O jornal tem uma responsabilidade ética pelo que publica.

No meio do caminho, há o paradigma dos Correios: eles também transportam conteúdo, mas ninguém vai pensar em culpar a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos pelo que está escrito nas cartas, ou esperar que ela atue censurando correspondência. Os Correios são rotineiramente usados em esquemas questionáveis — ofertas de “amuletos da prosperidade”, distribuição de boletos de instituições de caridade fajutas etc — mas não são tidos como corresponsáveis por nada disso.

Enfim, onde as redes sociais se enquadram? Ou elas precisam de um modelo próprio, novo?

 

O problema

A questão da (ir)responsabilidade das redes pelo conteúdo que nelas circula ganhou destaque depois que seu potencial para disseminar e popularizar desinformação foi reconhecido e transformado em arma por grupos políticos. Isso se deu, mais ou menos, ao mesmo tempo em que esse mesmo potencial realizava-se em sua plenitude, com a elevação de uma excentricidade, o movimento terraplanista, ao estado de fenômeno global. Mas o problema tem outras ramificações.

Ao longo de 2018, pelo menos 30 pessoas foram mortas em linchamentos, na Índia, por causa de um pânico moral desencadeado via um aplicativo de mensagens que, cada vez mais, assume características de rede social. O motivo? Boatos – infundados! – sobre ondas de sequestro de crianças. A atrocidade foi insuflada via WhatsApp.

A crise indiana levou o aplicativo a mudar algumas regras, incluindo a adoção de um limite para o número de vezes que um usuário pode compartilhar um mesmo conteúdo. No Brasil, em 2014, uma dona de casa foi linchada por vizinhos depois de ser acusada, via Facebook, de praticar “magia negra” envolvendo crianças.

Como a onda de linchamentos desencadeada por WhatsApp na Índia deve ter deixado claro, o padrão “utility”, mesmo se aplicado a um serviço de mensagens — que não chega a ser uma rede social em sentido pleno —, é permissivo em excesso. A própria empresa se viu compelida a intervir na circulação de conteúdo.

O padrão “jornal”, por sua vez, parece exigir demais dos donos das redes. Jornais e revistas não se limitam a disseminar conteúdo, produzem-no. Seguem linhas editoriais que orientam o que vai ser publicado, e como. Mesmo quando abrem espaço para comentaristas independentes, espera-se que exerçam um dever de curadoria e, quando falham nisso, são cobrados.

As redes sociais, ao contrário, não têm controle nenhum sobre a produção do conteúdo que disseminam; esta é parte de sua atração e, argumentam alguns, sua principal colaboração para a democracia. Esperar que tenham as mesmas responsabilidades editoriais e os mesmos deveres de curadoria de um jornal ou revista talvez até inviabilize seu negócio.

Então, quem sabe, o padrão “Correios”, em que cada um escreve o que quer, manda para quem quer, e eventuais danos causados pelas mensagens são problemas a serem resolvidos pelas partes, e pelo Judiciário, mas sem envolver o mediador-mensageiro? Soa como uma base razoável, mas… não é. E por três razões práticas, que desembocam num par de considerações éticas.

 

Novos tempos, novas regras

As razões práticas são: um, diferentemente dos Correios, as redes sociais lucram com o conteúdo que transmitem. Elas ganham dinheiro não com o transporte de material cuja natureza lhes é indiferente, como cartas e pacotes fechados, mas com tráfego e audiência. Aqui, a natureza do material é extremamente importante. Vídeos e textos que chamam mais a atenção são mais rentáveis do que postagens monótonas, o que torna as redes cobeneficiárias do sucesso de tudo que publicam — mesmo das mentiras, calúnias, fraudes etc.

Dois: as redes têm uma velocidade, um alcance e um imediatismo que nenhuma mídia física é capaz de emular, o que torna o potencial de dano de informações ruins, calúnias e conselhos deletérios muito maior. É improvável que uma nota publicada num jornal impresso, ou mesmo uma transmissão de TV, levasse a 30 linchamentos em diferentes cidades, como ocorreu na Índia.

Três, um fato crucial que é muito pouco apontado e discutido: as redes, embora não produzam conteúdo, exercem sim controle editorial sobre o que publicam, ao decidir, por exemplo, o que será exibido para quem, com que frequência, a que hora. Redes como o Facebook não são “ingênuas”: elas não se limitam a exibir aos usuários as postagens mais recentes de seus amigos. Do mesmo modo que um jornal organiza textos e fotos numa página, chamando mais ou menos atenção para este ou aquele assunto, a rede organiza as timelines.

Os critérios dessa edição, feita por algoritmos, são comerciais: ganham destaque as postagens que alguém pagou para que fossem vistas por alguém com seu perfil, leitor, ou aquelas que o algoritmo “conclui” que vai chamar mais a sua atenção. Em outras palavras, todas as postagens já são “curadas” por um sistema editorial que, incidentemente, é automatizado.

 

Censura

É, portanto, cínica a alegação de que não se pode cobrar das redes um exercício responsável do poder editorial, uma vez que esse poder já é efetivamente exercido, com base em critérios de lucratividade.

A questão aqui não é demonizar o lucro, mas apontar que o critério de rentabilidade não é mais neutro, inocente, virtuoso ou natural do que o da veracidade e da responsabilidade. Publicações jornalísticas exercem, rotineiramente, a tarefa de equilibrar o que é rentável com o que serve ao interesse público. Citando o imortal Stan Lee, poder engendra responsabilidade. Este é o primeiro argumento ético.

Para quem ainda se assusta com o espectro da censura nas redes, sempre é bom lembrar a limitação que o filósofo John Stuart Mill (1806-1873), que articulou a mais clássica defesa do conceito moderno de liberdade de expressão, impõe ao próprio imperativo. No terceiro capítulo do ensaio “On Liberty”, Mill escreve: “Até mesmo opiniões perdem sua imunidade, quando as circunstâncias em que são articuladas são tais que a expressão constitui instigação direta a um ato pernicioso”.

Se coisas como o discurso histérico antivacina, ou vídeos do presidente da República incitando as pessoas a quebrar o distanciamento social em meio à pandemia, não representam “instigação direta a ato pernicioso”, as definições de “instigação” e “pernicioso” precisam ser atualizadas. E este é o segundo argumento ético.

Redes sociais constituem uma categoria à parte: não são comensuráveis com utilities, jornais ou Correios. Talvez se possa sugerir um modelo de análise entre jornais e Correios. Há, ainda, quem prefira compará-las a praças públicas, espaços neutros e idealizados onde as pessoas interagem de modo livre e espontâneo. Dado o nível de controle editorial que já existe, no entanto, essa é uma visão ingênua.  E, de qualquer modo: até praças têm cuidadores, a quem cabe a responsabilidade de mantê-las limpas, bem iluminadas e livres de punguistas.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência. É coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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