Duas interpretações para a era da pós-verdade

Resenha
26 mai 2019
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Capa do livro A Morte da Verdade

Notícias falsas e pós-verdade são expressões que todos encontramos a cada esquina (virtual, na maior parte das vezes). Não há quem não se diga alarmado com esses fenômenos, definidos como a dissolução dos indicadores tradicionais de credibilidade e veracidade (“fake news”) e o do aparente desinteresse das pessoas em separar mentira de verdade da hora de tomar decisões, por exemplo, sobre saúde ou política (“pós-verdade”).

De fato, com tanta gente se declarando preocupada, ciente e alerta para ambos os problemas, é surpreendente que eles ainda sejam problemas. Mas, claro, a vítima crédula e fanática da mentira, da indiferença aos fatos e da desinformação é sempre alguma outra pessoa.

À medida que cresce o alarme, cresce o número de tentativas de entender ambos os fenômenos, que muitas vezes andam mesmo de mãos dadas.

Em 2017, com o mundo – ou, ao menos, a parte que se considera racional e bem-pensante – atordoado pelos fenômenos Donald Trump e Brexit, o jornalista britânico James Ball publicou uma mistura de livro-reportagem e análise ensaística, “Post-Truth: How Bullshit Conquered the World” (“Pós-Verdade: Como a Falação de Merda Conquistou o Mundo”), que, até onde sei, segue sem versão em português. Um ano depois, a crítica literária americana Michiko Kakutani lançou “A Morte da Verdade”, rapidamente traduzido para o público brasileiro pela Intrínseca.

As duas obras cobrem algum terreno comum, mas são bem diferentes. O livro de Kakutani mistura vários conceitos. A autora aborda uma história intelectual do desapego à verdade e da legitimação do discurso de ódio como arma política, e soma a isso a uma revisão do noticiário recente sobre a influência russa nas eleições presidenciais americanas e as investigações a respeito das “fazendas de trolls” mantidas pelo Estado russo para disseminar desinformação, tanto internamente quanto no Ocidente.

Kakutani recua até um panfleto publicado por Lênin, em 1907, em que o revolucionário russo prega que, quando o objetivo é disputar o apoio das massas com um adversário, a linguagem deve ser usada “não para corrigir os erros do oponente, mas para destruí-lo e varrer sua organização da face da Terra. A escolha de palavras é de natureza tal que evoca os piores pensamentos, as piores suspeitas a respeito do oponente e, de fato, em contraste com as palavras que convencem e corrigem, ‘leva confusão às fileiras do proletariado’”. Ela então lembra que Steve Bannon, até pouco tempo atrás o guru de Donald Trump, já  havia se definido como “leninista”.

Ela também dedica boa parte do livro a discutir a influência do pensamento pós-moderno – com sua “desconfiança das Grandes Narrativas”, a visão de “instabilidade do real” e o olhar irônico para o mundo — na disseminação do conceito de que todos os pontos de vista são "igualmente válidos”, logo “a minha verdade é tão verdadeira quanto a sua”.

A autora diagnostica, ainda, uma fusão, forjada na mentalidade norte-americana, entre essas ideias, nascidas originalmente na esquerda, com as fantasias hiper-individualistas sobre o poder do pensamento positivo, que sempre atraíram setores menos sofisticados da direita.

Sendo uma crítica literária, Kakutani mantém uma postura um tanto quanto ambígua em relação ao pós-modernismo. Reconhece o valor do movimento para as artes e a literatura, e afirma que seu poder corrosivo foi importante para dissolver certos hábitos mentais autoritários e arrogantes que predominavam nos anos 50, abrindo espaço para vozes diversas. Mas afirma que se trata de uma corrosão, no fim, estéril, que no limite, trata qualquer tentativa de estabelecer o significado real das palavras, ou a verdade dos fatos, como esforço ingênuo e inútil.

E isso, ela afirma, é água para o moinho dos autoritarismos: citando George Orwell e Hannah Arendt, a autora aponta que o que interessa aos autocratas, mais do que convencer o povo a crer na mentira, é criar uma sensação de cansaço, um senso de futilidade e indiferença frente à verdade. Se convicção na ausência de ironia fanatiza, ironia na ausência de convicções paralisa.

Capa do livro de Ball

Ball, por sua vez, vai menos fundo nas raízes filosóficas e intelectuais da chamada cultura de pós-verdade, e se concentra em fatos e análises mais imediatos, incluindo os efeitos indiretos e indesejados dos algoritmos das redes sociais, o deslocamento dos focos de credibilidade – a “mídia corporativa capitalista” pode ter razões para mentir, mas minha tia é uma santa – e, talvez o que seja mais importante (porque tem pouca gente falando nisso), os vícios e problemas que emergem dos processos normais de operação da mídia tradicional.

Quando se fala em problemas dos jornais, rádios e TVs tradicionais (e seus produtos digitais coligados), a maioria das pessoas tende a pensar em interferências deliberadas, e de natureza política ou comercial.

Ball, no entanto, chama atenção para o fato de que, assim como as redes sociais têm seus algoritmos, que muitas vezes acabam sendo explorados maliciosamente por terceiros, o jornalismo que se pretende sério e (na medida do possível) imparcial também é feito de hábitos, processos, regras – algoritmos, enfim, ainda que implementados por mãos humanas – que também são vulneráveis à exploração.

 O caso exemplar apresentado no livro é o do senador americano Joseph McCarthy e sua caça aos comunistas nos anos 50. Ball descreve como os jornais dos Estados Unidos foram transformados, por suas próprias normas e processos internos, em cúmplices de uma mentira: McCarthy afirmava ter uma lista de agentes comunistas infiltrados no governo dos Estados Unidos.

A lista, no entanto, nunca existiu. Mas era um senador da República falando. Os jornais não podiam ignorar. A lista não existia, mas jornais sérios não chamam ninguém de mentiroso. E assim por diante. McCarthy conseguiu hackear o processo jornalístico legítimo e usá-lo a favor do tumulto que queria produzir; é possível argumentar que a campanha eleitoral de Trump tenha feito o mesmo.

Ambos os livros são ricos em informação e análise. O de Kakutani às vezes soa como um manifesto anti-Trump, mas esse viés partidarizado é mais do que compensado pela riqueza das fontes e pela clareza das análises. O de Ball se aventura a propor algumas soluções que, claro, estão longe de ser fáceis ou rápidas. Rever o algoritmo do jornalismo talvez seja uma das mais urgentes.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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