John Snow na Guerra das Epidemias

Questão Nerd
15 abr 2018
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O pub John Snow

 

“Os vapores nocivos, que causam doenças, são conhecidos como miasmas. O miasma se espalha pelo ar e, conforme o aspira, o ser humano é tomado pela enfermidade. ”

Essa era explicação que cientistas, no início do século 19, elaboraram para explicar a origem das doenças, como cólera e a peste negra. Felizmente, tivemos um herói muito importante e de origem humilde que não estava muito satisfeito com essa teoria. John Snow!

Ao contrário do bastardo nobre João das Neves retratado na Guerra dos Tronos, esse John Snow não era impulsivo a ponto de invadir o território de mortos-vivos com apenas seis companheiros. O John que vamos conhecer também não sabia de nada, mas desconfiava. Além disso enfrentou um inimigo muito mais letal e sorrateiro, a bactéria Vibrio cholerae, que causa o cólera.

John Snow foi o primeiro filho de William e Frances Snow e nasceu em um dos bairros mais pobres de York, na Inglaterra. Napoleão acabara de bater em retirada da Rússia e a Revolução Industrial inglesa estava, literalmente, a todo vapor. Quando jovem, Snow era perspicaz, sempre curioso e inquisitivo. Aos 14 anos, virou aprendiz de um médico em Newcastle e foi lá que encontrou o fantasma que o assombraria pelo resto da vida: o cólera.

O cólera é uma doença cruel. Nos casos mais graves, um paciente adulto pode perder 20 litros de água em apenas um dia, até sua pele inchar e seu sangue engrossar a ponto de não conseguir mais correr pelas veias e artérias, por conta de todo o líquido perdido.

John Snow aplicou todo o conhecimento que recebeu na época de seu treinamento. Sangrias, ópio, ervas aromáticas para afastar o miasma, nada disso surtia efeito, e as pessoas continuavam morrendo. Quando as pessoas o encontravam na rua, falha após falha, apontavam o dedo e clamavam: “Você não sabe de nada, John Snow!”.  (Talvez não tenha sido bem assim, mas você entende o espírito da coisa).

Mesmo sem estar contaminado com o cólera, John Snow sentia aquilo nas entranhas. Em 1836, foi a Londres para completar sua formação em medicina. Após receber o doutorado, um novo surto de cólera se espalhou por Londres. Ele sabia que o cólera não era resultado de um vapor maligno e estava determinado em prová-lo. Teorizou que a diarreia, causada pelo cólera, poderia não ser apenas um sintoma, mas também um meio de transmissão.

A teoria microbiana, a ideia de que existem seres vivos pequenos demais para serem vistos a olho nu, não estava estabelecida na época e o termo “germes” era desprezado por muitos médicos. Para agradar a comunidade científica – e conseguir ser ouvido –  ele começou escrevendo que a cólera era causada por um “veneno autorreplicante”, presente em água contaminada por matéria fecal.

Para tentar provar sua hipótese, John fez um estudo de caso. Encontrou uma rua onde, num lado, todo o esgoto escorria para o poço de onde tiravam a água para beber. Enquanto, do outro lado, o esgoto escorria para longe do poço.

Resultado? No lado onde a água se misturava com esgoto, quase todos os habitantes acabaram doentes., Do outro, apenas uma pessoa sucumbiu ao cólera. Empolgado, Snow mostrou seus resultados para seus colegas cientistas, que em coro responderam: “Você não sabe de nada, Snow!” (Talvez não tenha sido exatamente assim, mas você entende o espírito da coisa).

E mais outro surto de cólera atingiu Londres. Snow estava convencido de que fumaças imaginárias não causavam doenças, e desenhou um dos maiores experimentos estatísticos feitos até então. A capital inglesa recebia água de  duas empresas : a Southwark & Vauxhall Cia. de Água – vamos chamá-la de S&V – e a Lambeth Cia. Ambas usavam água do rio Tâmisa, mas a S&V e a Lambeth tinham uma diferença chave, o que mudou o mundo para sempre.

Na época, Londres não apenas tinha fossas sob as casas e detritos correndo pelas ruas, mas também um sistema de esgoto que escorria, pasmem vocês, para o Tâmisa. Todo o esgoto da cidade era bombeado para o rio que até hoje corta a cidade, mas que felizmente não está mais poluído. E era do Tâmisa que a maioria dos habitantes obtinha água pra beber. Seria como se parte da população de São Paulo fosse abastecida pela água do Tietê ou do Pinheiros.

Pois bem, a grande diferença entre a S&V e a Lambeth é que a primeira captava água no final do curso, onde o  rio já estava saturado de esgoto. Já a Lambeth estava localizada em uma região rio acima, antes da contaminação começar para valer. John tinha o estudo de causa conhecido como A e B perfeito. Esse teste é uma maneira de comparar duas situações que diferem em um único ponto. No estudo liderado por Snow, a diferença seria a presença, ou não, de esgoto na água. Essa era a única grande variação entre as águas, pois ambas eram coletadas do rio Tâmisa.

Tudo que precisava fazer para testar sua hipótese sobre a causa do cólera era comparar as taxas de infecção dos abastecidos pela S&V à dos abastecidos pela Lambeth. Simples, não?

Uma pergunta rápida para você, caro leitor: sabe de onde vem a água que abastece sua residência? Pois é. Uma parcela grande dos moradores de Londres também não tinha a menor ideia de qual companhia abastecia a própria residência. Ir de porta em porta perguntando não estava deixando nosso herói mais sábio. Seria mais fácil perguntar para a água de onde ela vinha. E foi exatamente o que Snow fez.

Analisando amostras d’água da empresa S&V, Snow descobriu que esta continha 4 vezes mais sal do que a água da Lambeth. Pronto! John não precisava contar com o depoimento das pessoas, ele poderia coletar um pouco de água de cada residência e realizar as análises em seu laboratório. Seus relatórios estavam completos. Trinta e oito das 44 mortes por cólera ocorridas no mês tinham sido de clientes  da água da S&V. Isso significava que você tinha 93% de chance de morrer, só tendo a empresa errada abastecendo sua casa. John estava convencido de que o cólera era transmitido pela água.

E mais um surto atingiu Londres, no ano de 1854. Dessa vez John decidiu criar um mapa e anotar todas as mortes causadas pela doença, para verificar se alguma região específica do bairro de Soho estava sendo mais afetada do que outra. Enquanto o seu mapa era preenchido, um padrão começou a emergir, como pode ser visto na figura abaixo.

Mapa da epidemia de Londres

 

Os pontos vermelhos representam os casos de mortes reportados, enquanto as torneiras em azul representam as bombas disponíveis para a população coletar água para consumo. Não é preciso muito esforço para perceber que as mortes por cólera ocorriam com maior frequência nas proximidades da bomba no centro do mapa. Pela lei do mínimo esforço praticada pelos seres humanos, quanto mais fácil o acesso e menos trabalho para pegar água, melhor. Pronto! A bomba de Broad Street era praticamente a arma do crime com fumaça saindo do cano.

“Fumaça… miasma… Já sei! Certamente o miasma está rondando essa fonte”, diria um dos defensores da nuvem pestilenta. John Snow, prevendo essa desculpa, foi além. Voltem ao mapa e reparem nas duas áreas destacadas em amarelo.

A área maior era uma casa que abrigava 535 trabalhadores e poucos casos de morte foram reportados lá. O que chamou a atenção de John é que, se a teoria do miasma estivesse correta, eles deveria encontrar muito mais casos de cólera entre esses trabalhadores. O que era de se esperar, uma vez que a casa ficava bem próxima à bomba de Broad Street e muitos dos trabalhadores passavam por lá todos os dias.

Porém, se a teoria de John também estivesse certa, esses trabalhadores também teriam que estar contaminados. Isso se eles bebessem a água da bomba suspeita. Para a surpresa e felicidade de John, o alojamento  tinha abastecimento de água próprio, e que não vinha da S&V. Eles coletavam água das cisternas da Grand Junction, que era limpa. O pessoal do miasma talvez tenha até inventado uma desculpa,  mas a teoria das nuvens nocivas estava cada vez desacreditada.

A outra área do mapa pintada em amarelo corresponde à cervejaria local. Bem, ali eles bebiam cerveja e nada mais. Mesmo se a cervejaria utilizasse a água da fonte contaminada, o processo de fervura para o preparo da bebida certamente eliminava boa parte das bactérias e deixava a água descontaminada. Cheers! Nuvem de espuma, só da cerveja agora.

A última peça do quebra-cabeça

Com esses dados em mãos, nem mesmo o mais ferrenho dos miasmáticos conseguiu contestar John e todos concordaram que ele talvez soubesse de alguma coisa. Porém, um detalhe foi omitido até aqui. A água da bomba de Broad Street era subterrânea e não tinha nenhum contato com as companhias de distribuição, muito menos com o esgoto. John teve ajuda crucial do reverendo Henry Whitehead durante as fases finais de seus estudos, e essa foi mais uma delas. Snow e Whitehead voltaram aos registros e pesquisaram onde os primeiros casos do cólera haviam sido reportados e, por fim, chegaram ao paciente zero.

Um bebê infectado sobreviver por pelo menos quatro dias. Esses quatro dias foram de muita diarreia e vômito, segundo a mãe do bebê. Imediatamente Snow e sua equipe foram até a casa desta senhora e quiseram saber mais sobre os acontecimentos acerca daqueles dias. Após a entrevista, descobriram a informação que estava faltando. O destino das fraldas desse bebê solucionaram o caso. A mãe frequentemente jogava as fraldas da criança numa fossa que ficava no quintal da casa.

O comitê de contenção da doença imediatamente autorizou a vistoria da fossa e descobriram que a construção continham rachaduras e os restos das fezes do bebê escoavam para a fonte de água da bomba de Broad Street, que ficava a dois metros de distância. Com essa peça final eles tinham tudo o que necessitavam e por isso John Snow ficou conhecido como o primeiro epidemiologista da história. Finalmente, o verão chegou.

Em 1992, uma réplica da bomba foi instalada em no local original da bomba de 1854. Todos os anos a John Snow Society realiza a "Palestras Pumphandle" sobre assuntos de saúde pública. A bomba de Broad Street ficou exposta até agosto de 2015, quando precisou ser removida devido a obras na rua. Em 2018 a bomba voltou a ser colocada, bem em frente a um pub. Nome do pub? John Snow.

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenador dos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science no estado de São Paulo

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