Qual a qualidade da ciência produzida no auge da pandemia?

Questão de Fato
6 set 2022
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Como várias outras atividades econômicas e sociais em todo o mundo, as pesquisas científicas também foram muitos impactadas pela pandemia do SARS-CoV-2. Um exemplo disso foi a explosão do número de artigos sobre a COVID-19. De acordo com levantamento feito por Philip Shapira, da Universidade de Manchester, na Inglaterra, entre 2020 e abril deste ano foram publicados nada menos do que 500 mil papers sobre a doença em periódicos ao redor do planeta, o que representa um pouco menos de 4% de toda a literatura científica de todas áreas.

Shapira lembra que pesquisas relacionadas a várias formas de coronavírus têm sido realizadas há décadas, mas com um número de publicação relativamente baixo, não mais do que cerca de 150-200 por ano entre o final dos anos 1990 e início dos 2000. Depois, com o surgimento da síndrome respiratória aguda grave (SARS), entre 2003 e 2005, causada pelo coronavírus Sars-CoV, o número de papers chegou perto de 4.700 nesses três anos. Depois se manteve em cerca 1.400 por ano até 2019.  

O crescimento explosivo do número de artigos levanta algumas questões. Uma delas seria sobre um eventual desequilíbrio na geração do conhecimento. Com a demanda por pesquisas sobre a COVID-19 e a injeção de grande volume de recursos pelos governos e outros financiadores para realizá-las, outras área podem ter sido preteridas. “Sem dúvida alterou o equilíbrio, visto que passamos (pesquisadores e financiadores) a pensar na COVID19 como prioridade a ser estudada”, avalia a farmacêutica Gabriela Lemos de Azevedo Maia, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). “Destaco entre as áreas preteridas o estudo de moléstias endêmicas, como a dengue, por exemplo”.

A antropóloga Carmen Rial, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), prefere abordar a questão em um contexto mais amplo. Para ela, que é ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia, a pandemia que afetou o planeta a partir de 2020 modificou profundamente a infraestrutura da produção de conhecimento. No caso do Brasil especificamente, diz ela, os problemas de financiamento na ciência são enormes no atual governo. “A pandemia poderia ter alterado o sentido dos recursos financeiros, uma vez que escancarou a importância vital da ciência, em todos os seus campos”, considera.

Mas o que se viu, critica, foi a criação de um discurso antivacina, anticiência e a propaganda de remédios que a ciência testou e julgou ineficaz, por exemplo. “O que se viu também foi um grande número de jovens cientistas deixando o país, por falta de apoio a eles e às universidades”, lamenta.

Outra questão diz respeito à qualidade das pesquisas e dos artigos, que pode ter ficado comprometida devido à pressa em realizá-los e publicá-los. Isso, por sua vez, pode ter levado ao aumento do número de artigos retratados. Pelo menos é o que dizem dois pesquisadores de Cingapura, no artigo An alarming retraction rate for scientific publications on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), publicado já em 2020.

Para eles, o alto número de publicações sobre a COVID-19 atesta o esforço urgente e intenso da comunidade científica para melhor compreender o vírus, sua transmissão e a patologia da doença. No entanto, argumentam, existe a preocupação de que um ritmo tão alto de publicações possa estar associado a erros e imprecisões involuntários, bem como a graus variados de desinformação.

Os autores concluem dizendo que observaram uma taxa alarmante de retratação de estudos associada às publicações sobre COVID-19, o que pode ter ocorrido devido à pressa dos pesquisadores em enviar artigos para os periódicos e à facilidade com que alguns deles foram acelerados para publicação. Por isso alertam que, em um desastre global como o da pandemia, no qual a resiliência e a recuperação humana dependem de soluções que seriam fornecidas pela ciência e pela pesquisa, é ainda mais importante que esta seja conduzida com o máximo de rigor e integridade. 

Nem todo mundo pensa assim, no entanto. Em um pequeno artigo, três integrantes do Retraction Watch, um blog que informa sobre retratações de papers e temas relacionados, contestam a conclusão dos pesquisadores de Cingapura. Eles dizem que é preciso levar o prazo em que as retratações vêm sendo feitas. Em média, em tempos normais, um artigo com erros graves leva cerca de três anos para ser retratado. Agora, no caso da COVID-19, isso está sendo feito em apenas alguns meses.

Por isso, de acordo com eles, mesmo que a taxa de retratação de trabalhos sobre a COVID-19 possa parecer “excepcionalmente alta” no curto prazo, é preciso ver como ela se compara à de outras áreas, onde as retratações chegam mais devagar. Também deve-se notar, dizem os autores, que os artigos sobre a COVID-19 estão sendo submetidos a um escrutínio mais detalhado, o que significa que suas falhas estão sendo detectadas com frequência maior do que no caso dos trabalhos não relacionados à pandemia.

No banco de dados da Retraction Watch há 254 artigos sobre a COVID-19 retratados.

Para Gabriela, não há dúvida de que a urgência em dar respostas fez com que muitas etapas das pesquisas não pudessem ser bem planejadas. “Isso gerou resultados de menor qualidade”, afirma. “No caso dos preprints, eles sempre existiram, mas o problema foi o valor que o mundo científico, ávido por respostas, passou a dar a estes resultados que ainda não foram avaliados pelos pares”.

Carvalho lembra que, independentemente deste “boom” de artigos relacionados à pandemia, as publicações podem ser feitas em diversos periódicos científicos que, tipicamente, contam com política editorial seletiva e crivo da própria comunidade acadêmica. “Há que se considerar que a qualidade e profundidade das revisões feitas por pares pode variar de um veículo para outro”, ressalva. “No entanto, não há como negar a ocorrência de divulgação precipitada de informações sem fundamentação científica (medicamentos ‘milagrosos’ e a suposta relação da COVID-19 com HIV, por exemplo). Nesses casos faltou a seriedade natural e necessária de toda e qualquer pesquisa científica”.

A química Teresa Dib Zambon Atvars, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é mais cautelosa na sua avaliação. Para ela, a explosão do número de publicações sobre a COVID-19 e a rapidez com qual foram feitas não prejudicou a qualidade das pesquisas. Mas diz que quem se aproveitou da situação para publicar mais vai sofrer as consequências.

“O processo de depuração do conhecimento é um fato normal, e leva tempo”, explica. “Vai depurar ainda, mas o que foi gerado em termos de conhecimento novo por unidade de tempo é impressionante. Os grupos oportunistas de pesquisa, que quiseram pegar carona nos preprints e outras formas menos convencionais de divulgação, serão banidos por perda de credibilidade. Levará algum tempo, mas serão banidos, principalmente nos países democráticos e com sistemas consolidados de pesquisa”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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