O desafio do acesso aberto à publicação científica

Questão de Fato
21 mai 2021
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Os artigos científicos são praticamente a única maneira pela qual a ciência é representada e validada no mundo. No modelo tradicional de sua divulgação, eles são publicados em periódicos especializados, cujo acesso é restrito a assinantes, normalmente bibliotecas universitárias e agências públicas, que os franqueiam, em geral, a seus cientistas e estudantes. O problema, além do alcance limitado, é o alto custo desse sistema. No Brasil, por exemplo, a Capes gastou R$ 480 milhões em assinaturas do Portal Periódicos em 2020.

Para se contrapor a esta situação, a partir do início dos anos 2000, cientistas de todo o mundo passaram a defender um modelo alternativo, chamado de Open Access, ou acesso aberto. A ideia é de que os resultados das pesquisas científicas devem ser disponibilizados gratuitamente. Isso foi reforçado em 2018, quando um grupo de organizações nacionais de financiamento de pesquisas da Europa anunciou a Coalizão S, que entrou em vigor em janeiro deste ano, pela qual todos os estudos realizados com recursos públicos devem ser liberados para quem quiser.

O problema é que, como se sabe, não existe almoço grátis. Alguém vai pagar a conta. No caso, ela recai sobre os próprios pesquisadores, que bancam, com recursos dos seus projetos ou do próprio bolso, a publicação de seus artigos. O que não é barato. Dependendo da importância e do prestígio do veículo, o preço pode variar de US$ 800 a US$ 11 mil. Esse custo pode prejudicar e até excluir cientistas dos países em desenvolvimento, cujos salários ficam entre US$ 350 e US$ 3 mil.

 

 

Modelo tradicional

Para entender como se chegou a essa situação, é preciso saber como funciona o modelo tradicional, de acesso restrito. O primeiro ponto é que, apesar do público limitado, trata-se de um negócio altamente lucrativo para as editoras de periódicos científicos, como o grupo RELX, conglomerado multinacional no qual a Elsevier se transformou em 2015, e a Springer Nature.

Em artigo publicado no jornal britânico The Guardian, o escritor e jornalista especializado em ciência e meio ambiente Stephen Buranyi dá alguns números. Com receita global total de mais de 19 bilhões de libras (cerca de R$ 143 bilhões), em tamanho essa indústria está entre a fonográfica e o cinema, mas com uma rentabilidade muito maior. Em 2010, por exemplo, o braço de publicação científica da então Elsevier teve uma receita de 2 bilhões de libras (cerca de R$ 15 bilhões), com um lucro 724 milhões de libras (R$ 5,47 bilhões). Isso corresponde a uma margem de 36% – maior do que a relatada pela Apple, Google ou Amazon, naquele ano.

Sabendo como essa indústria funciona, não é difícil entender por que ela é tão lucrativa. No caso de uma editora tradicional, como a Abril ou a Globo, por exemplo, para ganhar dinheiro, primeiro ela tem que cobrir uma série de custos – os salários de jornalistas (redatores, repórteres, editores), que produzem artigos e matérias e os editam e avaliam se vale a pena distribuir o produto (revistas, jornais) acabado para assinantes e varejistas. Tudo isso custa caro, e as revistas de sucesso, segundo Buranyi, costumam lucrar em torno de 12% a 15%.

A maneira de ganhar dinheiro com um artigo científico é muito semelhante, exceto por um detalhe: as editoras conseguem se livrar da maior parte dos custos reais. Buranyi lembra que os cientistas criam seus trabalhos – em grande parte financiados por recursos públicos – e os entregam às editoras científicas gratuitamente. Elas então pagam editores científicos, que julgam se compensa publicar o material e verificam sua gramática.

A maior parte da carga editorial – verificar a validade científica e avaliar os experimentos, um processo conhecido como revisão por pares –, no entanto, é feita por pesquisadores que trabalham como voluntários. As editoras então vendem o produto de volta para bibliotecas institucionais e universitárias financiadas por recursos públicos, para serem lidos por cientistas que, em um sentido coletivo, criaram o produto em primeiro lugar. Na analogia de Buranyi, é como se a New Yorker ou a Economist exigissem que jornalistas escrevessem e editassem o trabalho uns dos outros gratuitamente e pedissem ao governo que pagasse a conta. 

Visto de fora, é um modelo de negócio muito estranho. Um relatório do Deutsche Bank de 2005, citado por Buranyi, se referiu a ele como um sistema “bizarro” de “triplo pagamento”, no qual “o Estado financia a maioria das pesquisas, paga os salários da maioria daqueles que verificam a qualidade do trabalho e, em seguida, compra a maior parte do produto publicado”.

É por isso que o médico e doutor em Bioquímica Olavo Amaral, professor do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e coordenador da Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade, diz que um dos desafios mais difíceis na carreira de um cientista é tentar explicar o sistema de publicação científica para as pessoas em geral. “Como justificar que pesquisadores entreguem seu trabalho de graça a editoras estrangeiras, que lucram cobrando pelo acesso a ele?”, indaga. “Ou que, além de não cobrar, eles às vezes paguem por isso?”

Claro, há uma explicação para isso. Segundo Amaral, os cientistas não se sujeitam a isso porque sejam pouco zelosos com seus orçamentos, mas precisamente pelo contrário. “Artigos em revistas de prestígio são o motor que garante reputação, empregos e recursos de pesquisa no mundo acadêmico”, explica. “Como quem paga por uma bolsa Louis Vuitton, seus autores estão menos interessados no produto do que na marca”.

A consequência, segundo ele, é uma economia de prestígio que permite às grandes revistas cobrar o que bem entendem, além de obter mão de obra gratuita de cientistas ansiosos por associarem-se a suas marcas, como revisores ou editores. “Nesse mercado, não há espaço para renovação: mesmo concorrentes que ofereçam serviços melhores a um custo mais baixo levariam décadas para obter a reputação de uma Nature ou uma Science”, lamenta.

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Com isso, de acordo com ele, pesquisadores de países como o Brasil se veem forçados a escolher entre duas alternativas eticamente questionáveis: deixar seus trabalhos serem bloqueados por paywalls para o lucro alheio, ou desperdiçar os escassos recursos de pesquisa do país com taxas de acesso aberto inflacionadas. Paywall, “muro de pagamento” em inglês literal, ou acesso pago, é um método de restringir o acesso a um determinado conteúdo através da exigência de pagamento de uma assinatura.

Segundo Amaral, antes da internet, editoras comerciais eram necessárias para a divulgação de um trabalho científico. “Financiados por universidades ou governos, os cientistas faziam pesquisa e atuavam como revisores de seus pares, delegando a tarefa de imprimir e distribuir artigos em papel a uma empresa que cobrava pelo produto de forma a manter o negócio viável”, explica.

Os custos disso, diz ele, eram, e ainda são, mantidos por bibliotecas universitárias e agências públicas ao redor do mundo, que pagam somas cada vez mais maiores por artigos que suas próprias instituições produzem. Aí entra o acesso aberto. “O absurdo de um sistema que bloqueia a leitura de pesquisa feita com dinheiro público, tem gerado apoio crescente a esse novo modelo, em que cientistas pagam uma taxa única para cobrir os custos de publicação do artigo e mantê-lo disponível”.

 

Modelos alternativos

A realidade é um pouco mais complexa. Segundo Germana Barata, especialista em acesso aberto da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e secretária da Associação Brasileira de Editores Científicos, há pelo menos três tipos principais de publicações nesse modelo: os mais tradicionais são a via verde (em que o artigo é publicado em revista de acesso restrito, mas vai para um repositório institucional e fica disponível sem restrições – às vezes apenas depois de um certo tempo, caso haja política de embargo das revistas); via dourada (mais comum no Brasil, em que todo o conteúdo da revista é liberado e muitas vezes nem se cobra taxa de publicação – article processing charges, ou APC); e há ainda o modelo híbrido, em que uma revista que cobra assinatura oferece opções de artigos sem restrições, mas geralmente com custo bem superior aos artigos restritos.

“Além disso, alguns autores acrescentam uma chamada via bronze, em que veículos fechados liberam artigos (free access, acesso livre) sem definir como acesso aberto, que podem estar ligados ao interesse público, como, por exemplo, aqueles sobre COVID-19, que passaram a ser liberados pela urgência da questão”, acrescenta Germana.

A especialista vê vantagens no modelo de acesso aberto. “São muitas, e a principal é liberar informação científica para todos os interessados, sobretudo países mais pobres que não podem pagar pela assinatura de editoras comerciais”, explica. “A informação, portanto, pode ser checada, e acessada até por quem não pertence à comunidade acadêmica. Com essas publicações damos mais visibilidade a países, temas, grupos de pesquisa, que podem ficar marginalizados em publicações pagas, que geralmente priorizam artigos, grupos, instituições consideradas de mainstream”.

O odontólogo Sigmar de Mello Rode, do Instituto de Ciência e Tecnologia do campus de São José dos Campos da Universidade Estadual Paulista (Unesp), também aponta aspectos positivo do open access. Para ele, o modelo aproxima a comunidade científica da sociedade, uma vez que ela tem acesso à informação, sem barreiras econômicas. “Ele é benéfico no momento em que possibilita liberdade total ao uso da informação científica em prol do desenvolvimento tecnológico e da saúde, além de promover equidade”, diz. “É a forma mais justa de prestar contas à sociedade sobre os recursos públicos utilizados no financiamento à pesquisa básica e aplicada”.

Para o físico Ewout ter Haar, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP), desde que não sejam cobradas as APC, o open access faz sentido, porque num mundo onde a distribuição de conteúdo quase não custa nada, não se justifica restringir, de forma artificial, o acesso aos resultados da pesquisa científica, que foi financiado com dinheiro público. “O open access deve servir como estratégia dos acadêmicos para controlar eles mesmos as plataformas de distribuição e validação dos resultados de pesquisa, em vez de deixar isso na mão de empresas privadas com finalidade de lucro”, defende.

 

Problemas

Mas há o outro lado da moeda. O modelo também tem desvantagens e consequências ruins para a ciências e os pesquisadores, principalmente dos países em desenvolvimento. Um dos principais é o pagamento, que em muitos casos deve ser feito para a publicação de artigo. “É um problema sério, consumindo recursos que poderiam ser investidos em pesquisa”, diz o físico Marcelo Martinelli, também do IFUSP. “Os US$ 11.390 (cerca de R$ 63,5 mil) cobrados pela Nature para deixar um artigo em acesso aberto correspondem a dois anos de bolsa de doutorado do CNPq”.

Isso parece mostrar que as boas intenções iniciais do modelo não se concretizaram totalmente. “O modelo foi inicialmente entendido como uma forma de democratização do conhecimento pelo lado do consumo, do usuário final”, explica o biólogo e bioquímico Pedro Lagerblad de Oliveira, pesquisador da doença de Chagas da UFRJ. “Mas terminou sendo um elemento de elitização pelo lado da autoria, porque apenas quem tem um nível de financiamento mais alto (pesquisadores de países mais desenvolvidos, com maior investimento em ciência) podem pagar os custos de publicação nas revistas de maior prestigio. E isso ocorre independentemente da qualidade do trabalho”.

Oliveira, assim como Martinelli, já pagou pela publicação de trabalhos seus. Recentemente, ele teve dois artigos aceitos pela revista Frontiers of Physiology. Para que eles fossem publicados, no entanto, ele teve de desembolsar US$ 2.950 (cerca de R$ 16,5 mil) por artigo. Oliveira se inscreveu para a isenção das taxas de publicação, mas obteve apenas 50%. “Em bioquímica, a maioria dos periódicos cobra taxas, mas no Brasil os recursos para a ciência foram substancialmente reduzidos”, diz. Martinelli, por sua vez, pagou, em março, US$ 2.858 para um artigo ser publicado na revista Optica, da The Optical Society, sem isenção. 

O sistema de isenção das APC existe, mas nem sempre funciona a contento. “Elas ficam a critério da revista, e esses critérios nem sempre são claros”, explica Amaral. “Frequentemente o autor tem que demonstrar que não tem verbas de pesquisa para pagar, o que às vezes é difícil. Mas mais do que isso, mesmo quando se tem dinheiro, me parece pouco ético gastar uma parte substancial de um auxílio de pesquisa com publicação por uma editora estrangeira, quando há carências gigantescas de recursos dentro do laboratório (incluindo-se aí estudantes sem bolsa ou com bolsas extremamente defasadas)”.

 

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O biólogo Rubens Pasa, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), lembra outro complicador do sistema de isenção. De acordo com ele, em geral os países em desenvolvimento têm algum tipo de isenção, mas o Brasil há algum tempo já passou desse nível para os órgãos internacionais. “Por isso, não nos encaixamos na maioria das vezes”, diz. “Entretanto, alguns pesquisadores já conseguiram isenção total. Particularmente, o máximo que consegui foi 25% de desconto em uma publicação”.

O problema é que é preciso primeiro passar por todo o processo de revisão do artigo, aguardar que ele seja aceito, para depois solicitar ou saber que foi contemplado com o desconto. “Em termos práticos, eu só considero submeter para uma revista paga se eu tiver condições de fazer o desembolso total, justamente porque o processo é muito demorado para, depois da decisão, voltar atrás e submeter a outro veículo”, conta Pasa.

A isenção pode ser parcial ou total. Oliveira já obteve ambas, em oportunidades diferentes. “Mas com um abatimento de 50%, como o que consegui recentemente, sobre um custo de US$ 3 mil, ainda se tem que pagar US$ 1.500, o que é muito alto para a maior parte dos grupos de pesquisa no Brasil”, reclama. “Esses valores não são pagáveis com recursos vindos do salário de docentes e pesquisadores. Mesmo em uma outra situação, deveriam ser pagos com recursos dos projetos, mas essa não é uma situação que seja compatível com os orçamentos da maioria dos projetos de pesquisa hoje no Brasil”.

As consequências disso tudo são muitas e variadas. Uma delas é a parceria entre pesquisadores apenas para pagar a conta da publicação. “Muitas vezes autores brasileiros acabam convidando coautores nacionais e internacionais apenas para garantir que haverá recursos para publicar em revistas de alto impacto (geralmente de acesso restrito e com taxas de APC mais altas)”, explica Germana. “Isso causa impactos na comunicação científica, porque se inclui autores não pelo seu mérito ou colaboração, mas por limitações financeiras”. 

Outra consequência do pagamento das APC no modelo de acesso aberto é que sem recursos suficientes para bancar as publicações, os pesquisadores do mundo em desenvolvimento cada vez mais vão publicar em revistas com baixo impacto, e isso certamente vai diminuir a competitividade do próprio cientista, além da ciência do seu país como um todo. “O que tenderá a acontecer é publicar em revistas de menor prestígio”, prevê Oliveira. “Isso diminui o impacto do seu trabalho, pois para uma parte grande da comunidade científica, o veículo ainda é uma espécie de selo de qualidade”.

Além disso, diz Haar, o acesso aberto com pagamento de APC concentra nos países ricos e nos seus pesquisadores o controle sobre as plataformas de distribuição e validação dos resultados de pesquisa. “Apesar de, em princípio, ser verdade que a ciência é universal, na prática há um entrelaçamento forte entre ela, política e dinâmicas sociais”, explica. “Esse modelo é um dos mecanismos que levam as hierarquias de poder a continuar na mão de cientistas radicados em países ricos. Open Access ‘de verdade’ (sem APC) e manter o controle sobre as plataformas de distribuição e validação dos resultados de pesquisa é essencial para países e para pesquisadores.”

 

Predadores

O surgimento, cada vez em maior número, de periódicos predatórios, que visam primeiramente o lucro financeiro em detrimento da qualidade científica, é outro corolário adverso do acesso aberto não previsto por seus idealizadores. “Eles simulam um processo seletivo de avaliação dos artigos e publicam resultados que vão de ruins a falsos, além de alguns até relevantes de pesquisadores incautos ou inseguros, que por inexperiência não conseguem emplacá-los em revistas sérias”, explica Martinelli. “Essas revistas falsificam a avaliação para providenciar publicações registradas (exigidas pelas agências de financiamento e universidades no mundo todo), porém em geral são irrelevantes – ou nocivas”.

Em síntese, para ele, as revistas de acesso aberto podem ajudar na divulgação da ciência, mas ele vê com ceticismo esta via como a única para disponibilizar os resultados da pesquisa. “Se é o público que paga a pesquisa, certamente ele merece acessar a informação – ainda que o cidadão médio não consiga ir além das redes sociais”, justifica. “Entendo assim que, por ‘público’ podemos pensar mais a imprensa – e algum interessado esparso que destoe da massa”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista

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