Água “plasmada” não mata coronavírus, nem traz benefício para saúde

Questão de Fato
20 ago 2020
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Não existe medicamento conhecido capaz de impedir o contágio pelo SARS-CoV-2 ou de eliminá-lo do organismo de pacientes infectados. A melhor forma de limpar superfícies onde o vírus possa estar presente ainda é água e sabão, detergente ou álcool 70%. A despeito disso, e ampliando a série, aparentemente infinita, de invencionices médicas e produtos estapafúrdios, sem fundamento científico nenhum, surge agora a água plasmada, ou água de GANS, para eliminar o novo coronavírus e/ou tratar a COVID-19. Segundo os propagadores dessa nova solução médica, você pode bebê-la ou borrifá-la tanto no seu corpo quanto em salas, quartos e outros espaços, para erradicar o vírus de todo o ambiente. Essas promessas são desprovidas de qualquer base científica.

O produto é fruto das ideias de um engenheiro nuclear iraniano, Mehran Tavakoli Keshe. A ideia dos GANS (em português, “Gás em Estado Nano-Sólido”) não é nova. Surgiu em 2010 e foi impulsionada internacionalmente pela Fundação Keshe, cujos trabalhos se iniciaram em 2015. Basicamente, a ideia central é que você pode fazer uma mistura de água, metais e sal, dentro de um copo, e proporcionar a formação de “nanopartículas” pelo aprisionamento de diferentes gases, como dióxido de carbono ou metano.

O produto final (a tal “água de GANS” ou “água plasmada”), formado dentro do copo, poderia, segundo os promotores da invenção, ser usado para finalidades terapêuticas. O que torna o processo atraente, à primeira vista, é a facilidade de execução. Qualquer um pode fazer sua água “plasmada” na cozinha. E mais: segundo os discípulos de Keshe, utilizando-se diferentes metais no processo, diferentes gases podem se tornar “nano-sólidos” na solução final, servindo para interagir terapeuticamente com diferentes sistemas: a alma, as emoções ou o corpo físico. Sim, isso mesmo: um gás que interage com a alma. 

A página brasileira criada para promover o produto tem, como mensagem de abertura, em destaque, o aviso de que o que se vê ali não é uma recomendação médica. Parece um contrassenso, não é mesmo? O motivo da mensagem pode ser evitar problemas com a Justiça. O que é prudente, pois vale destacar que o próprio Keshe, junto com a esposa, foi condenado na Bélgica por acusações desse tipo.

 

Química para o Enem

Existem vários vídeos ensinando a fazer a água plasmada (veja um exemplo aqui). Porém, o que chama atenção na construção do que os discípulos de Keshe chamam de “copo de vida” é que tudo é muito semelhante a uma estrutura experimental rudimentar de eletroquímica, algo que muita gente aprende na escola. Basicamente, tudo não passa de uma solução de água e sal, com diferentes metais imersos, o que faz com que cargas elétricas e íons se movam no sistema, provocando vários efeitos que qualquer candidato bem preparado para o Enem deveria ser capaz de explicar..

A partir das trocas de cargas elétricas, e das interações entre os íons, os efeitos das reações químicas que se processam podem ser facilmente perceptíveis: pode ocorrer corrosão ou deposição metálica, além da formação de substâncias que se precipitam, ou seja, depositam-se no fundo do copo.

Todos esses efeitos podem render boas discussões em uma aula de química. Mas e quanto à formação dos “gases capturados” que seriam a particularidade especial dos GANS? Vários testes já foram feitos para tentar identificar esses gases aprisionados, mas nada foi encontrado. Experimentos em busca de sinais de dióxido de carbono (CO2), aplicados ao produto de um kit de GANS vendido comercialmente, revelaram que o material realmente formado no processo não passa de compostos à base de zinco, um dos metais usados no sistema.

Da mesma forma, outro teste independente mostrou que o produto final não apresenta nanopartículas de CO2, e também não demonstrou possuir comportamento magnético. Isso é importante porque a argumentação que busca justificar o uso terapêutico da água de GANS envolve “interações energéticas”, via campos gravitacionais e magnéticos, entre todas as partículas constituintes do Universo. Isso tudo não passa de uso indevido da linguagem científica para impressionar os incautos. Veja um recorte da suposta explicação do princípio de ação terapêutica da água plasmada contra o novo coronavírus:

Quando colocamos água potável em contato com o GANS, ocorre transferência de campo dos GANS para a água, o que faz com que o vírus perca sua força e se desligue da célula infectada. Esse processo drena a energia do vírus e o erradica” (vídeo da Fundação Keshe, 2min57s, grifo nosso).

É justamente neste contexto que surgiu mais uma fake news, recentemente, sobre o combate à COVID-19: circulou na internet a afirmação de que uma mistura de água, sal e zinco (exatamente os compostos encontrados ao final da produção da “água plasmada”) seria capaz de combater a doença. Como vários médicos entrevistados sobre o assunto relataram, não há evidências confiáveis para sustentar esta afirmação.

Ainda sobre as evidências, o vídeo de divulgação do tratamento afirma, ao final, que a eficácia da água plasmada foi testada experimentalmente, chegando-se a um resultado positivo para centenas de pacientes. Embora pareça um resultado promissor, isso está apenas publicado no artigo que o próprio vídeo indica nos créditos finais. Ao analisá-lo, porém, o que se percebe é que foram acompanhados diversos pacientes “antes e depois” do tratamento com GANS. Não há qualquer informação sobre tratamentos convencionais de suporte de vida usados concomitantemente, não há cegamento no estudo, e nem comparação do grupo experimental com grupo de pacientes que recebeu placebo... Ou seja, não há o mínimo de condições necessárias para uma avaliação real da eficácia do produto.

É sempre importante relembrar que, no geral, estudos do tipo “pré”-“pós” – que comparam como um grupo de pessoas estava antes e depois de uma intervenção, sem controles independentes  – dizem muito pouco. Pense na última vez em que teve um resfriado, e em todas as coisas que fez antes de sarar (tomar água, dormir, usar o banheiro, brincar com o gato...). Numa análise “pré”-“pós”, qualquer uma delas poderia aparecer como “cura” (você estava resfriado antes de brincar com o gato, brincou e, dois dias depois, não estava mais).

Portanto, não é porque existem relatos de pessoas que apareceram curadas depois de beber ou borrifar essa água plasmada no corpo (como aqui, por exemplo), que isso seja evidência suficiente para defender esse preparado como um bom tratamento. Estudos que visam validar a eficácia de tratamentos ou medicamentos são feitos usando metodologias de pesquisa adequadas, e não apenas relatos de pacientes satisfeitos. Além disso, mesmo tratamentos completamente inertes podem funcionar para uma parte das pessoas (veja mais aqui e aqui).

Embora esse produto não seja realmente recente, tendo surgido ao longo da última década, o momento atual de pandemia criou um terreno fértil para o reaproveitamento de ideias pseudocientíficas surgidas em diferentes contextos.

Nesta espécie de vale-tudo da (pseudo)medicina, o preço a pagar é alto: enquanto a população não estiver consciente de que tratamentos médicos precisam se basear em evidências adequadas para serem implantados, muitas pessoas estarão de braços abertos para qualquer coisa que oferecerem com a promessa de saúde. Fazendo isso, abrem mão de medicina efetiva em troca de pseudociências potencialmente danosas.

Nesse sentido, existe uma página na internet cujo propósito é divulgar informações que demonstrem publicamente os fatos contra as argumentações falaciosas desenvolvidas pelo Sr. Keshe (visite www.keshefacts.org). Inclusive, logo ao acessar a página, existe, no momento, uma mensagem especificamente voltada para os brasileiros: em virtude do aumento significativo do número de acessos à página por usuários brasileiros, eles alertam que o Sr. Keshe e sua fundação NÃO oferecem nada eficaz para a cura da COVID-19.

 

Apelo à autoridade

Mas como é possível que as pessoas se deixem levar por esse tipo de ideia? Embora não seja simples responder à questão, algumas estratégias são velhas conhecidas. E pelo menos duas delas aparecem aqui, no universo da água de GANS:

1. Formação profissional: o Sr. Keshe é engenheiro nuclear, como as publicações favoráveis a suas ideias fazem questão de afirmar e reafirmar. A ideia é passar a validação por autoridade, ou seja, se alguém com a formação científica que ele tem defende o tal produto, então isso se torna motivo para que nós todos também possamos acreditar. No entanto, em ciência, ideias e teorias sempre devem se apoiar em mais (muito mais) do que a mera autoridade de quem as defende. Avaliar evidências é sempre mais importante que aceitar o argumento da autoridade.

2. Palavreado científico: em todas as publicações relacionadas ao universo GANS, encontramos longos textos explorando palavras do vocabulário técnico-científico, como nanotecnologia, plasmas, energia, campos magnéticos e campos gravitacionais. Ao contrário do que parece, não há qualquer fundamento científico rigoroso por trás do uso desse vocabulário no contexto do GANS. Esta estratégia usa as palavras como artifício de cegamento pela ciência, ou seja, ao usar termos que o público leigo não domina, cria-se um escudo para que as pessoas não possam avaliar a situação e perceber o engano.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia

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