Os duvidosos benefícios da ingestão de placenta

Questão de Fato
17 jan 2020
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mulher grávida

Quando Brooke Brumfield não estava às voltas com o enjoo matinal, tinha desejo de comer nachos. Como muitas grávidas de primeira viagem,  sentia-se ansiosa e animada com a gravidez. Tinha acabado de comprar uma casa com o marido, um bombeiro florestal que estudava para ser paramédico e trabalhar mais perto de casa. Tudo corria bem até os 5 meses de gestação, quando Brooke perdeu seu emprego numa startup de tecnologia financeira e, com ele, o salário e três meses de licença remunerada. 

Depois de montar um novo negócio para sustentar a família, ela conseguiu clientes, mas o acesso a creches era limitado e os horários de trabalho do marido estavam sempre mudando. “Quando o bebê nasceu, eu estava para lá de sobrecarregada,” diz Brooke. “Era como se tivesse sido atropelada por um caminhão.”

Ela tinha ouvido histórias de amigas e parentes sobre um meio de minimizar o estresse e a turbulência emocional do pós-parto: comer a placenta, o órgão altamente vascularizado que alimenta e protege o feto durante a gestação, e é expelido após o parto. As mulheres falavam maravilhas sobre os resultados, que a produção de leite materno aumentou e se sentiam cheias de energia. Aquela sensação ruim, causada pela baixa dos hormônios, não parecia mais tão avassaladora, explicaram.  

Assim, por uma taxa, a doula de Brooke cozinhou, desidratou e pulverizou a placenta, colocando o pó fino em cápsulas. Ela tomou as pílulas por 6 semanas após o parto, o que, segundo ela, deixou-a menos zangada e menos emotiva. E ela conta que, quando sua produção de leite diminuiu, voltou a tomar as cápsulas, e o problema sumiu.

Sociólogos e médicos chamam o fenômeno de placentofagia. Antes restrita à medicina alternativa e contracultura, a prática virou moda entre celebridades como Kourtney e Kim Kardashian, January JonesMayim BialikAlicia Silverstone e Chrissy Teigene acabou ganhando um público mais amplo.

Apesar de não existirem estatísticas sobre quantas mulheres aderiram à onda de comer placenta, a internet tem um número cada vez maior de “provedores de serviços placentários”, gente que prepara pílulas, smoothies e pomadas para ajudar mulheres e se recuperar no pós-parto. Mas há dúvidas quanto a esses supostos benefícios. Dependendo da pessoa a quem se pergunta, a ingestão de placenta ou é medicina, ou é uma prática potencialmente perigosa, baseada num mito. Como essa prática virou moda, a despeito de inexistência de pesquisa científica ou evidências de benefícios clínicos? A resposta diz mais sobre o mundo das mães de primeira viagem do que sobre a placenta.

Qualquer médico que atenda a um paciente vai citar pesquisas ou estudos que corroborem o tratamento indicado. Uma grávida com pré-eclâmpsia, por exemplo, vai ouvir que estudos recentes indicam que baixas doses de aspirina reduzem as complicações graves para gestante e feto. Mas as bases da placentofagia, uma prática que está fora das fronteiras da biomedicina, estão num texto do século 16.

O “Compêndio de Matéria Médica”, ou “Bencao gangmu”, de Li Shizhen, publicado em 1596, é uma farmacopeia chinesa e o mais celebrado livro da tradição chinesa da farmacognosia, ramo da farmacologia que estuda os princípios ativos naturais, de origem animal ou vegetal. Ele é citado nos sites que oferecem os tais “serviços placentários” e nas páginas web dos seguidores da Medicina Tradicional Chinesa, um sistema milenar de alcance global.

Médico e herbalista, Li partiu de suas experiências empíricas com pacientes e de relatos anedóticos, poesia e tradição oral. Sua enciclopédia do mundo natural é “um gabinete textual de curiosidades naturais”, de acordo com a historiadora Carla Nappi, autoira de The Monkey and the Inkpot, um estudo sobre a vida e obra de Li. Contendo cerca de 1.900 substâncias, de ginseng a pimenta em grão, de osso de dragão a esperma de tartaruga, o livro de Li descreve a placenta humana seca como uma droga que “revigora as pessoas”, e eu era usada para tratar impotência e esterilidade, entre outras queixas de saúde. Para defensores da placentofagia, esse livro funciona como prova etnomédica de uma longa tradição da prática e, por extensão, de sua eficácia e segurança. 

Mas, como muitos dessas alegações de histórias com longa tradição, essas origens da placentofagia como tratamento do pós-parto são contestadas. Sabine Wilms, escritora e tradutora de mais de uma dúzia de livros sobre medicina chinesa,  pesquisou textos chineses clássicos de ginecologia e obstetrícia e me disse que “não há nenhuma evidência de que uma mulher consuma sua própria placenta no pós-parto, como prática tradicional da medicina chinesa”, mesmo que algumas formulações contendo placenta humana seca tenham sido prescritas para outras condições, como as descritas por Li.

Exceção feita à enciclopédia de Li de 400 anos atrás, é praticamente impossível encontrar qualquer registro histórico que faça referência à ingestão de placenta no pós-parto. A voz das mulheres está ausente dos registros e, mesmo no século 19, não há relatos sobre o parto e o que era feito da placenta. Mas, quando antropólogos da Universidade de Nevada, em Las Vegas, reviraram dados etnográficos de 179 sociedades diferentes, descobriram “uma notável ausência de tradições culturais associadas à placentofagia materna”.

A primeira referência moderna à placentofagia aparece na edição de junho de 1972 da revista Rolling Stone. “Eu coloquei a placenta num pote”, escreve uma autora anônima, respondendo a um pedido da revista para que leitores escrevessem sobre sua vida pessoal. “Era magnífica – roxa, vermelha e turquesa.” Ela descreve sua placenta como “maravilhosamente deliciosa e restauradora”, depois de tê-la compartilhado e comido com amigos. 

Raven Lang, considerada a responsável pela redescoberta da “mais antiga e mais usada receita de preparação de placenta”, diz ter testemunhado placentofagia enquanto ajudava mulheres que optaram pelo parto em casa, quando trabalhava como parteira e praticante da Medicina Tradicional Chinesa na Califórnia, no início dos anos 1970. Essas mulheres viviam da terra e, segundo ela, podem ter se inspirado no comportamento de animais, domésticos e outros, para aderir à placentofagia.

Não demorou muito para que a placentofagia avançasse para além das comunidades hippies da Califórnia. Em 1984, Mary Field, enfermeira e parteira do Reino Unido, descreveu a ingestão de sua própria placenta como “uma experiência sigilosa” para tratar a depressão pós-parto que sofreu após o nascimento de seu segundo filho. “Eu não disse nada”, escreveu Field, “porque essa prática se aproxima de outro tabu, o canibalismo, já que se trata de carne humana, e parte do seu próprio corpo”. Ela se lembrava da dificuldade para engolir a própria placenta. “O gosto era ruim, e eu não conseguia mastigá-la.”

O aparecimento da tecnologia para encapsular compostos, desenvolvida pela indústria de alimentos e apropriada pelos provedores de serviços placentários no início deste século, pôs fim a experiências viscerais como a de Field.

As mulheres não precisavam mais processar a própria placenta e suportar o gosto horrível. Pílulas semelhantes a vitaminas podiam ser preparadas por qualquer um que tivesse acesso a equipamento para desidratação, matérias-primas e vídeos de treinamento online. 

O boom da placentofagia ressalta um antigo enigma para os pesquisadores. Todos os mamíferos não-humanos consomem sua placenta após o parto, por motivos que os cientistas desconhecem (1).  Por que os seres humanos se tornaram a exceção para essa regra quase universal entre os mamíferos? Para Daniel Benyshek, antropólogo e co-autor do estudo da Universidade de Nevada, que não encontrou evidências de prática de placentofagia em grupos humanos, a exceção levanta um alerta. Isso sugere que as razões para os humanos terem abandonado a placentofagia não foram apenas culturais ou simbólicas, mas adaptativas – “que há algo perigoso em relação a ela ou, pelo menos, houve em nossa história evolutiva.”

Há poucos dados científicos sobre benefícios e riscos potenciais da placentofagia, mas alguns estudos pequenos sugerem que quaisquer nutrientes presentes em placentas cozidas, ou em cápsulas, dificilmente seriam absorvidos em concentrações grandes o bastante para ter efeitos significativos sobre a saúde. Também não foi muito estudado se há hormônios sexuais, como estrogênio, e em quais quantidades no tecido placentário processado, mas sua ingestão no pós-parto pode reduzir a quantidade de leite materno e aumentar o risco de formação de coágulos.

Ainda assim, os serviços para encapsular placentas – que não são regulamentados nos EUA – encontraram um público receptivo entre as consumidoras americanas. (A agência de segurança alimentar da União Europeia declarou a placenta como “alimento novo” em 2015, impedindo que o negócio da encapsular placenta se instalasse no continente.) Esses serviços, geralmente microempresas de propriedade de mulheres, se apresentam como alternativa para um parto altamente medicalizado e burocratizado, que frequentemente negligencia as necessidades das mulheres. As consulta pós-parto se concentram apenas em exames pélvicos e informações sobre contraceptivos. Uma pesquisa feita entre mães americanas que passaram por essas consultas mostrou que uma a cada três mulheres ficou com a sensação de que suas preocupações sobre saúde não foram abordadas. Do outro lado, serviços que fornecem cápsula de placentas usam o discurso do empoderamento.

Esse discurso pode ser bem aceito por mães de primeira viagem como Brumfield, às voltas com a enorme pressão de cuidar de um recém-nascido, amamentá-lo, cuidar da casa e voltar ao trabalho, lidando com as ansiedades da depressão pós-parto, do cansaço e pouco leite.

“De certa forma, as consumidoras de placenta são motivadas pelo desejo de ser boas mães”, dizem pesquisadores da Dinamarca e Estados Unidos, que analisaram o surgimento dessa “economia da placenta”. De acordo com eles, ela reflete “a ideia da maternidade como um projeto neoliberal, em que as mães são responsáveis por seu próprio bem-estar individual, bem como o de seus bebês”.

Enquanto isso, a incidência de depressão pós-parto continua crescendo, as políticas de licença maternidade são pífias e o custo de creches é geralmente proibitivo. É fácil perceber por que tantas mulheres estão aflitas para buscar ajuda, real ou imaginária, onde quer que possam encontrá-la.

 

Daniela Blei é historiadora, escritora e editora com base em San Francisco. Este artigo foi publicado originalmente, em inglês, no site Undark

 

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1. NOTA DA TRADUTORA: Há pelo menos duas hipóteses para o fato de fêmeas de mamíferos ingerirem suas placentas. A primeira é que, assim, eliminam-se odores de mãe e cria que poderiam atrair predadores. A segunda é que a ingestão da placenta permitiria que a mãe recuperasse nutrientes logo após o parto, e que isso também reforçaria o vínculo mãe e filho.

 

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