Armas, crime, morte: o peso da evidência

Questão de Fato
18 jan 2019
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Sequência da HQ "Billy the Kid", da Charlton Comics (1958)
Sequência da HQ "Billy the Kid", da Charlton Comics (1958)

A questão sobre a posse, ou porte, de armas de fogo pela população civil desdobra-se, na verdade, em duas questões: uma, de caráter mais  filosófico, diz respeito ao direito e à liberdade do cidadão, em relação ao que se percebe como os interesses maiores da sociedade e a legitimidade desses interesses. Essa é uma questão mais de valores do que de fatos concretos.

A outra, empírica, para a qual existe resposta científica, clara e o objetiva, trata dos efeitos do armamento civil sobre os indicadores de saúde e segurança pública. É dessa segunda que vamos tratar aqui.

Quando o ministro-chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni disse, a respeito do decreto que altera as regras para posse de armas de fogo no Brasil, que “toda a experiência da humanidade mostra, sem nenhuma falha que negue essa evidência, que quanto mais armada a população, menor a violência” ele se lançou não apenas no reino da pseudociência, mas do negacionismo. A evidencia científica a respeito do assunto, virtualmente unânime, vai no sentido contrário.

 A agência de checagem Lupa fez um bom trabalho para desmontar a falsa informação passada pelo ministro, mas aqui vamos ampliar um pouco o escopo da discussão.

De forma bem resumida: quando se comparam diferentes países, não aparece correlação direta entre o grau de armamento da população e a violência na sociedade. Há países desarmados e pacíficos (Inglaterra, Japão); há países armados e pacíficos (Noruega e, mesmo, Estados Unidos); e há países desarmados e violentos (Brasil, Rússia).

A questão é que os indicadores de criminalidade têm muito mais a ver com condições econômicas, culturais e sociais do que com o número de rifles e pistolas per capita. Um argumento muito usado contra o Estatuto do Desarmamento brasileiro, aprovado em 2003, é de que as taxas de homicídio por arma de fogo continuaram aumentando após sua aprovação.

Mais armas, mais crimes

Mas essa é uma verdade apenas parcial:  dados do Ipea mostram que as taxas, que vinham subindo vertiginosamente desde 1999, caíram imediatamente após a aprovação, e se mantiveram abaixo do pico de 2003 até 2009, quando retomaram o caminho de alta – mas num ritmo ainda bem inferior ao do início do século. Depois, voltaram a disparar em 2012.

Na ausência de análises estatísticas conclusivas que isolem fatores de confusão, faz muito mais sentido atribuir os surtos de alta de 2009 e 2012 a condições sociais e econômicas do que a uma lei aprovada vários anos antes. Nota técnica publicada pelo Ipea em 2016 estima que o número de homicídios no Brasil, entre 2011 e 2013, teria sido 41% maior sem o Estatuto em vigor.

Curiosamente, em 2017 uma análise estatística sofisticada, publicada sobre a situação dentro dos EUA,  onde as leis sobre porte de arma variam entre os Estados, encontrou uma forte correlação positiva entre leis que permitem o porte de arma por civis e o aumento da criminalidade em geral.

O levantamento estima que os Estados que adotaram leis que permitem que cidadãos comuns carreguem armas consigo têm, dez anos após a aprovação, taxas de violência até 15% maiores do que teriam na ausência dessas legislações.

Claro, estimativas contrafactuais são sempre complicadas – não temos um Universo paralelo que nos permita observar o que realmente teria ocorrido, por exemplo, na ausência do Estatuto do Desarmamento – mas é importante notar que, no geral, os estudos e simulações que buscam explorar as ligações entre leis sobre armas e violência, no Brasil e nos Estados Unidos, apontam uma correlação positiva entre leis menos restritivas e mais crime.

Quem quiser se aprofundar mais nas pesquisas sobre armamento civil e criminalidade pode visitar o dossiê montado pelo economista Thomas Conti.

 

Saúde pública

Onde existe uma correlação bastante clara é entre armamento civil e mortes ou ferimentos por armas de fogo, principalmente suicídios, acidentes e homicídios impulsivos, cometidos por “cidadãos de bem”, como crimes passionais ou brigas de trânsito. Dados  do FBI mostram que, de 10.982 homicídios por armas de fogo nos Estados Unidos em 2017, apenas 299 – isso é menos que 3% – contavam como homicídios “justificáveis” (legítima defesa, por exemplo) cometidos por civis.

Uma meta-análise – um estudo que agrega os resultados de diversos trabalhos sobre um mesmo assunto – publicada em 2014 no American Journal of Public Health concluía que não existe relação entre a posse de arma de fogo e o homicídio de desconhecidos (um bandido que invade sua casa para cometer um assalto seria, provavelmente, um desconhecido), mas encontrou correlação positiva entre a posse da arma e o homicídio de conhecidos (parentes e amigos).  

Outro trabalho de 2014, publicado no Journal of Internal Medicine, apontava que a presença de uma arma de fogo no domicílio aumenta o risco de morte violenta de moradores, seja por assassinato ou suicídio.

Os autores desse estudo chamam atenção para o papel da impulsividade: uma tentativa de suicídio (ou homicídio) cometida por impulso, no calor do momento, tem mais chance de acabar em morte se houver uma arma de fogo no local.

Um levantamento realizado na Califórnia e publicado em 1999 mostrou que cidadãos que haviam adquirido uma arma de fogo tinham duas vezes mais risco de consumar o suicídio do que a população em geral. A presença da arma não causa o comportamento suicida – mas uma tentativa de suicídio com arma de fogo tem probabilidade muito elevada de se efetivar.

No Brasil, as estatísticas de suicídio por armas de fogo vinham em declínio desde 2001, mas a queda acentuou-se após a aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003. Trata-se apenas de correlação, mas dada a literatura internacional sobre o assunto, é uma correlação sugestiva.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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