Pseudociência: isso existe?

Questão de Fato
22 nov 2018
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Capa do livro The Philosophy of PseudoscienceO geneticista – e filósofo! – Massimo Pigliucci vem trabalhando, já há vários anos, para restabelecer a respeitabilidade filosófica do termo “pseudociência”. Meus amigos cientistas (e, principalmente, os colegas que compartilham da visão por trás desta “Questão de Ciência”) talvez fiquem surpresos ao ouvir isso, mas a triste verdade é que há cerca de 30 anos que a palavra não é levada muito a sério entre a turma mais sofisticada “de humanas”.

Editado por Pigliucci e pelo filósofo belga Maarten Boudry em 2013, The Philosophy of Pseudoscience reúne artigos de uma série de autores unidos pela convicção de que aquilo que Karl Popper definiu como o problema da demarcação – a delimitação entre ciência, pseudociência e não-ciência – segue sendo crucial. Mas: quando e por quê a demarcação, aparentemente, deixou de ser relevante?

A maioria dos cientistas naturais, quando tem algum contato com a questão da demarcação, encontra o paradigma falibilista proposto por Popper: a ideia de que uma hipótese científica deve ser testável, e que a atividade científica se caracteriza pela coragem de, impiedosamente, abandonar hipóteses que falham quando testadas.

Filósofos, no entanto, sabem há tempos que essa descrição, embora útil na prática cotidiana, tem problemas sérios quando examinada mais a fundo. Por exemplo: por ela, pode-se argumentar que tanto a astrologia quanto a física newtoniana são igualmente “científicas” (porque ambas são testáveis) ou igualmente “pseudocientíficas” (porque não foram abandonadas depois de falhar em testes – no caso da física newtoniana, podem-se citar os casos da órbita do planeta Mercúrio e das observações astronômicas que levaram à formulação da hipótese da matéria escura). 

Essa situação desconfortável perdurou até 1983, quando Larry Laudan publicou o influente ensaio “The Demise of the Demarcation Problem”.  Laudan argumenta que uma demarcação estrita é impossível: em suas palavras, não há um conjunto de pré-requisitos, individualmente necessários e conjuntamente suficientes, que toda ciência cumpra e, ao mesmo tempo, que nenhuma pseudociência contemple. Além disso, a palavra “pseudociência”, do modo como vinha sendo usada ao longo da história, não passaria de um pejorativo, um golpe baixo retórico.

“Os critérios de demarcação são tipicamente usados como máquinas de guerra em batalhas de polêmica entre campos rivais”, aponta. “De fato, muitas das pessoas mais intimamente associadas à questão da demarcação tinham interesses ocultos (às vezes não tão ocultos) envolvidos”, como no caso da antipatia ideológica de Popper pelo marxismo. “Deveríamos abandonar termos como ‘pseudociência’ e ‘não-científico’ de nosso vocabulário: são apenas frases ocas”.

Laudan não se apresenta, no entanto, como um relativista epistemológico – alguém que acha que “vale tudo” no campo do conhecimento, ou que todas as alegações sobre o funcionamento da natureza e do Universo são igualmente válidas.

“Ao afirmar que o problema da demarcação entre ciência e não-ciência é um pseudo-problema (...) não estou, de modo algum negando que há questões cruciais, epistêmicas e metodológicas, a levantar sobre alegações de conhecimento”, afirma o autor. “Continuam a ser tão importantes quanto antes questões como: quando uma alegação é bem confirmada? Quando podemos considerar uma teoria bem testada? O que caracteriza o progresso cognitivo?” Seu argumento é de que confundir a questão de “o que merece crédito” com “o que é científico” é um erro, e que a mera questão “o que é científico” não tem grande relevância, e se presta mais à manipulação retórico-política do que a qualquer outra coisa.

Jogadotres de futebol e uma mão de cartas: semelhantes no conceito de "jogo"
Jogos exemplificam "semelhança de família". Sigismund von Dobschütz / Tysto  CC BY-SA 3.0

Em sua introdução a The Philosophy of Pseudoscience, Pigliucci e Boudry atacam o núcleo do argumento de Laudan: a alegação de que a tentativa de separar ciência de pseudociência é desnecessária e infrutífera, porque não existe uma lista exaustiva de condições necessárias e suficientes a que todas as ciências – e nenhuma pseudociência – atendem.

“Mesmo se não chegarmos a uma definição clara e formal de um certo X, baseada num pequeno conjunto de condições necessárias e conjuntamente suficientes, ainda podemos aprender muito no processo”, escrevem. “Se pusermos o sarrafo do projeto de demarcação alto demais, não aceitando nada menos que uma definição essencial e imutável, uma declaração de óbito como a feita por Laudan torna-se muito fácil”.

Eles apontam, ainda, que a distinção entre ciência e pseudociência é fundamental no mundo moderno, por conta do poder e do prestígio que a ciência confere. O estudo das pseudociências como fenômeno epistêmico e social ainda é pouco aprofundado, e todos corremos riscos por causa disso.

“Frequentemente, as pseudociências são consideradas um passatempo inofensivo de uma minoria”, escrevem os dois filósofos. “Isto está longe de ser verdade”, sentenciam, citando, entre outros exemplos, os “bilhões de dólares tirados do povo por medicinas ‘alternativas’ como homeopatia”.

Num artigo à parte, uma resposta detalhada ao trabalho de Laudan, Pigliucci lança mão do conceito de “semelhança de família”, aplicado por Ludwig Wittgenstein para lidar com conceitos de definição pouco clara, mas para os quais é fácil encontrar exemplos intuitivos. Com isso, Pigliucci mostra que é, em geral, possível distinguir ciência de pseudociência, mesmo na ausência de uma lista fechada e exaustiva de critérios exatos.

O caso clássico usado por Wittgenstein diz respeito ao conceito de “jogo”. 

Em sua obra póstuma Investigações Filosóficas, publicada em 1953, o pensador austríaco escreve: “Não consigo pensar em uma expressão melhor para caracterizar essas similaridades do que ‘semelhanças de família’; por causa das várias semelhanças entre membros de uma família: porte, feições, cor dos olhos, jeito de andar, temperamento, etc., etc., se sobrepõem e se cruzam da mesma maneira. E direi: ‘jogos’ formam uma família”. Wittgenstein afirma ainda que um contorno bem definido “não é em absoluto necessário” para que um conceito seja útil.

Outros ensaios do livro investigam diferentes aspectos do problema da demarcação, incluindo uma tentativa de resgatar o velho critério da falseabilidade, mas aplicando-o a comunidades epistêmicas – uma hipótese testável torna-se pseudociência quando a comunidade encarregada de investigá-la se recusa a testá-la, ou a reconhecer os resultados dos testes – e até uma especulação sobre as raízes evolutivas da tendência humana de abraçar pseudociências.

Pigliucci e Boudry estão certos: o atestado de óbito do problema da demarcação foi emitido prematuramente, e mesmo que existam casos limítrofes em que a diferença entre ciência e pseudociência não fica clara, em geral a distinção é possível e necessária. Os colegas de humanas fariam bem em anotar esse fato: “pseudociência” não é um pejorativo oco. É algo que consome recursos, distorce decisões fundamentais e prejudica a sociedade.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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