Por que confiamos em modelos matemáticos?

Questionador questionado
9 abr 2020
gráfico

Quanto tempo leva para ir de carro de São Paulo ao Rio de Janeiro? Depende da velocidade do automóvel, certo? Quanto mais rápido nos movermos, menos tempo levaremos para chegar ao destino. Na escola, muita gente aprendeu uma relação chamada de “velocidade média”, que é a razão entre a distância (ou, para ser preciso, o “deslocamento[i] ”)  e o tempo necessário para percorrê-la. Usando essa equação, podemos estimar a velocidade média de um carro, de um ônibus ou de um avião. Se, ao contrário, soubermos a velocidade média, podemos usar a mesma equação para determinar, aproximadamente, o tempo da viagem. Fazendo isso, estamos, na verdade, usando um modelo matemático simples (a definição matemática da velocidade média) para tentar prever determinado fenômeno (tempo de viagem de São Paulo ao Rio).

Essa é a grande importância dos “modelos” na ciência. Eles permitem fazer previsões sobre determinados fenômenos e processos. No caso da viagem, quanto melhor for a nossa estimativa inicial para a velocidade média, melhor será a previsão sobre o tempo do percurso. Para estimarmos da melhor forma possível esse valor, precisamos levar em conta um conjunto grande de parâmetros, como a possibilidade de haver congestionamentos, acidentes, paradas para descanso, trechos de subida ou descida, e assim por diante. Como não conseguimos ter certeza absoluta sobre todos esses parâmetros, nossa previsão de tempo de viagem, obtida pelo modelo, sempre terá uma margem de erro. Em outras palavras, toda modelagem possui algum grau de simplificação. A natureza é difícil demais.

Ao longo da história, cientistas têm tentado driblar essas dificuldades fazendo modelos cada vez mais robustos, e temos tido bastante sucesso. Veja que, atualmente, uma sonda lançada para outro astro do sistema solar terá seu caminho traçado com bastante precisão. É possível saber, de antemão, o dia e a hora da chegada ao destino final.

Os modelos são tão importantes que estão por toda a parte na ciência. Podemos usar modelos matemáticos em astrofísica, por exemplo, para estudar o comportamento futuro de um sistema de milhares de estrelas e centenas de galáxias. Como esses corpos se comportarão no futuro? Quantos irão colidir, ou se fundir? Quantos serão ejetados para fora de seus sistemas? E quanto tempo esse processo vai levar?

Podemos também fazer previsões acertadas sobre a forma correta de produzir um circuito elétrico num aparelho de rádio capaz de transmitir e receber sinais eletromagnéticos, sustentando adequadamente as comunicações, por exemplo. Usamos modelos para fazer a previsão do tempo pra amanhã e para estimar cenários futuros para o clima do planeta. Também é possível usar modelos para reações químicas para tentar entender como elas ocorrem. Em uma sala de raios-X, podemos usar modelos que nos auxiliam a determinar a proteção adequada para diminuir a exposição do operador da máquina à radiação. Os exemplos são incontáveis.

Sim, a natureza é complicada, e os modelos são simplificações. Mas essas simplificações, embora inevitáveis, não tornam o processo pouco importante ou inútil, como todos esses exemplos demonstram. Modelar a natureza é um dos grandes trunfos da humanidade, por meio da ciência.

E o que isso tem a ver com a pandemia? A cada dia que passa, ouvimos a imprensa noticiar que “novo modelo estima determinado número de mortes nos próximos dias”, ou “usando determinado modelo, podemos esperar que o pico da pandemia numa cidade irá ocorrer em certo número de dias”, e assim por diante (exemplos aqui, aqui e aqui).

A área da saúde e a epidemiologia também contam com modelos matemáticos capazes de gerar previsões. O que tem sido feito em tempos recentes é tentar estabelecer previsões com base nos melhores modelos disponíveis. E, da mesma forma que temos dificuldade em estimar a velocidade média do carro para prever corretamente o tempo de viagem, nesta pandemia de COVID-19 também vamos encontrar dificuldades iniciais, pela falta de estudos e dados aprofundados. Quantas pessoas são contaminadas para cada indivíduo já infectado? Qual o valor mais correto pra o porcentual de infectados que precisará de tratamentos intensivos? Existe possibilidade de um indivíduo ser infectado duas vezes?

À medida que vamos aprendendo mais e obtendo mais dados, cientistas que trabalham com os modelos da área estão de prontidão para implementar esses dados e atualizar as previsões. E é exatamente por isso que temos visto, e vamos continuar vendo nos próximos dias, matérias jornalísticas e depoimentos de cientistas apresentando previsões novas, corrigidas, melhoradas e atualizadas. Esse é o poder da ciência, demonstrado de maneira clara enquanto passamos por esse momento complicado de crise mundial.

O que parece ser de comum acordo entre a maioria dos cientistas e dos diferentes modelos é que, se nenhuma ação de contenção for instituída pelas autoridades, o número de infectados crescerá em uma relação exponencial descontrolada, levando a uma demanda social por serviços de saúde que estará além da capacidade de qualquer município, estado ou país, mesmo nos centros desenvolvidos.

No presente, enquanto os cientistas trabalham contra o tempo em busca de um tratamento efetivo ou uma vacina, o que os modelos também indicam é que a saída adequada é a do isolamento social: diminuindo o contato ao máximo, diminuiremos o número de infectados num determinado intervalo de tempo. E mesmo supondo que o isolamento social não altere o número total de infectados contabilizado ao final da pandemia, essa ação garante o famoso “achatamento da curva de casos” que, em outras palavras, significa diminuir o ritmo em que a população se infecta e chega aos hospitais. Dessa maneira, há melhores chances de o número de casos conseguir ser absorvido pelos sistemas de saúde locais, e aumentarmos as chances dos infectados conseguirem tratamento de qualidade e sobreviver.

 

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia

 

NOTA

 

[i] Em física, o “deslocamento” de um corpo é diferente da “distância” percorrida por ele. O “deslocamento” corresponde ao comprimento de uma linha reta que liga diretamente o ponto inicial ao ponto final do movimento, ao passo que a “distância” tem o mesmo valor do comprimento de todo caminho percorrido. No caso da nossa viagem hipotética, estamos interessados no tempo total, portanto a velocidade média pode ser aplicada sem que precisemos conhecer todo o caminho. Naturalmente, quanto mais desvios, paradas, retornos, etc., o motorista fizer, mais tempo demorará a viagem, o que levará a uma velocidade média menor.

 

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