A ciência comprova a reencarnação?

Questionador questionado
26 mai 2019
Autor
Mosaico romano que mostra Orfeu, herói que visitou o mundo dos mortos e retornou
Mosaico romano de Orfeu, herói mitológico que visitou o mundo dos mortos e retornou

Reencarnação é o tipo de assunto que muitas vezes acaba indo parar naquela região instável do espaço mental em que parece haver alguma intersecção entre crença religiosa e conhecimento científico. Enquanto artigo de fé, não há exatamente o que discutir: cada um acredita no que quiser.

 Também é claro que a relevância emocional ou social de uma crença pode ser totalmente independente de sua aprovação científica. Entre hinduístas, budistas e espíritas, estima-se que cerca de 20% da população mundial tem algum tipo de familiaridade cultural com a ideia de que o espírito dos mortos retorna para viver novas vidas.

Mas quando o tema deixa a esfera religiosa e se arroga o tipo de validade peculiar das ciências naturais – por exemplo, se propõe a embasar tratamentos de saúde custeados com dinheiro público – a coisa muda de figura. Muitos católicos talvez experimentem efeitos psicológicos salutares do sacramento da Confissão, por exemplo, mas nem por isso teremos padres confessores integrados ao SUS.

Nesse contexto, pelo menos duas modalidades – antroposofia e constelação familiar – acolhidas no Plano Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), do Ministério da Saúde, pressupõem alguma forma de transmigração de almas. Além disso, outras propostas terapêuticas que, embora não integradas ao SUS, buscam se apresentar como cientificamente embasadas e surfar na onda de aceitação geral das práticas alternativas, como a regressão terapêutica, dependem de haver alguma realidade mensurável ligada a esse suposto fenômeno.

Estudos que tentam estabelecer a reencarnação em bases científicas costumam vir em duas modalidades: regressão hipnótica e depoimentos de crianças pequenas (geralmente, entre dois e seis anos). O segundo tipo costuma ser apontado como o corpo de evidência mais forte – ainda que, como veremos, esteja bem longe de conclusivo –, e atualmente é alvo, no Brasil, de pesquisa realizada na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Irlanda imaginária

A regressão hipnótica ganhou fama no Ocidente a partir do caso de Bridey Murphy, divulgado nos Estados Unidos no início da década de 50. Entre 1951 e 1953, o americano Morey Bernstein conduziu meia dúzia de sessões de hipnose com a dona-de-casa Virginia Tighe, em que Tighe “relembrou” uma vida pregressa como Bridey Murphy, uma irlandesa nascida no fim do século 18.

Publicado em 1956, o livro “A Busca por Bridey Murphy” vendeu mais de um milhão de exemplares nos EUA e desencadeou uma verdadeira mania popular por reencarnação, que incluiu a realização de festas a fantasia a que os convidados deveriam comparecer vestidos de acordo com suas “vidas passadas”.

Resenhas do livro por estudiosos da história da Irlanda não demoraram a pôr a biografia de Bridey em xeque, e a investigação de diversos detalhes sobre a vida da suposta encarnação irlandesa (nomes de ruas, professores, datas, etc.) falhou em produzir evidência confirmatória. A maioria dos cientistas que se debruçaram sobre o caso considera o produto da regressão de Virgina Tighe uma mistura de fantasia e criptomnésia – quando a pessoa se lembra de uma informação, mas não da fonte.

Mesmo o psiquiatra canadense Ian Stevenson (1918-2007), talvez o  maior propositor, no Ocidente, do estudo científico de supostos casos de reencarnação (e um dos poucos que seguiu levando o caso Bridey Murphy a sério, após todas as investigações), considerava a regressão hipnótica um instrumento perigoso e inadequado, pela facilidade com que fantasia, drama e imaginação podem moldar relatos. Em geral, apontou Stevenson em seu livro “Children Who Remember Previous Lives” (“Crianças Que Se Lembram de Vidas Passadas”), o uso de hipnose para revelar lembranças de vidas pregressas tende a produzir resultados “vergonhosos” ou “constrangedores”.

Sublinhando a baixíssima confiabilidade de informações obtidas hipnoticamente, em 1983 o autor britânico Chet Snow teve seu espírito “enviado para o futuro” por meio de hipnose e testemunhou uma invasão da Europa por tropas soviéticas na segunda metade da década de 90 (a União Soviética, claro, deixou de existir  1991), além do afundamento da Califórnia e do Havaí no Oceano Pacífico, também nos anos 1990.

Pergunte às crianças

Ao longo de décadas, Ian Stevenson colecionou milhares de depoimentos de crianças que supostamente se lembravam de vidas passadas. Mais de 90% da amostra começava a falar sobre existências anteriores entre as idades de dois e quatro anos, e perdia o interesse no assunto a partir dos cinco. E a esmagadora maioria vinha de culturas onde a reencarnação é um fenômeno aceito e esperado por razões religiosas, como os drusos do Líbano ou os hindus.

Crianças pequenas representam uma vantagem para esse tipo de pesquisa por uma série de fatores: se a reencarnação realmente ocorre, é de se esperar que as memórias da vida anterior, caso se transmitam entre encarnações, ainda estejam “frescas” na mente recém-nascida; e a criança supostamente ainda não teve experiência de vida suficiente para sofrer influência cultural do meio ou para ser vítima de criptomnésia.

As desvantagens, no entanto, são tão grandes ou maiores, ainda que menos óbvias. Primeiro, declarações feitas por crianças assim tão pequenas requerem, quase que inevitavelmente, interpretação por parte dos pais, que em geral estavam culturalmente predispostos a ver sinais de reencarnação.

Além disso, crianças, mesmo as menores, estão abertas a condicionamento, têm o desejo instintivo de atrair a atenção e o carinho dos adultos ao redor e encontram-se sempre atentas a pistas ambientais. Se um grupo de adultos apresenta a um menino pequeno duas fotos e lhe pergunta qual delas é sua esposa, não é difícil a criança intuir, pelos olhares e linguagem corporal, qual a imagem que deve escolher.

Problemas

Stevenson tinha consciência dessas limitações, e geralmente se referia a seus casos como “sugestivos” de reencarnação, ou “do tipo” reencarnação, evitando tratar qualquer peça de evidência isolada como conclusiva. Mesmo assim, ele parecia convencido de que, ao menos em certas ocasiões, a melhor explicação envolveria algum tipo de transmissão paranormal de informação e, possivelmente, de personalidade.

Críticos de seu trabalho, no entanto, apontam que a conclusão é inválida,  baseada num mero acúmulo de relatos anedóticos, desprovido de coerência teórica e que, no fim, reduz-se à falácia do apelo à ignorância: o fato de um pesquisador acreditar ter descartado as explicações de que não gosta não basta para demonstrar que aquela do seu agrado é a correta. Na verdade, se a explicação preferida tem uma probabilidade prévia muito baixa, o melhor é rever os procedimentos utilizados e reanalisar os dados.

“O maior problema com o trabalho de Stevenson é que os métodos usados por ele para investigar os alegados casos de reencarnação são inadequados para eliminar, como explicação, a simples imaginação das crianças que alegam ser reencarnações”, aponta o neurologista Terence Hines no livro “Pseudoscience and the Paranormal” (“Pseudociência e o Paranormal”).

O filósofo Leonard Angel analisou os métodos aplicados por Stevenson em um de seus casos considerados mais convincentes, o do garoto libanês Imad Elawar, e encontrou graves falhas. Champe Ramson, que durante algum tempo foi assistente de Stevenson, também produziu uma crítica dos métodos usados nas pesquisas .

Para além de questões metodológicas específicas, as tentativas de estabelecer a reencarnação sobre bases científicas sofrem ainda com um grave problema conceitual: o de o quê, exatamente, estaria “reencarnando”. Toda a neurociência sugere que memórias são estados físicos do cérebro. E o cérebro se desfaz junto com o resto do corpo, após a morte.

As religiões podem postular forças e entidades além do físico, mas aí as bases deixam de ser científicas, e voltamos à questão inicial sobre se deve haver confessionários no SUS. Resumindo: a ideia de reencarnação pode ser muita coisa, mas ciência, certamente, não é.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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