Como saber quanto dura a proteção de uma vacina?

Questão de Fato
16 mar 2022
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Quando começaram as campanhas de vacinação contra a COVID-19, havia uma impressão relativamente comum entre os brasileiros de que, uma vez tomadas as duas doses (ou até apenas uma, no caso do produto da Janssen naquela época), a proteção contra o SARS-CoV-2 viria sem prazo de validade. Essa esperança excessiva talvez tenha decorrido de uma comunicação muito otimista, até certo ponto uma reação às mensagens contrárias aos imunizantes do próprio governo federal. Mas, se não conhecemos ao certo a origem desse raciocínio, o fato é que ele não veio da ciência.

“Nós só sabemos ao certo qual a duração média da proteção acompanhando os vacinados ao longo do tempo”, diz Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Quanto mais tempo a vacina está no mercado, mais entendemos sobre a extensão do seu efeito no tempo, e sobre o melhor esquema vacinal – isto é, o melhor regime de doses (quantas, em qual intervalo).

No caso da COVID-19, os estudos sobre o tema e o próprio surgimento das variantes indicaram a necessidade de novas aplicações para preservar um alto grau de imunidade. Mas isso varia de acordo com a doença discutida, e com as evidências acumuladas.

Por exemplo: a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendava uma dose da vacina da febre amarela a cada dez anos. Após revisar uma série de estudos em 2013, no entanto, um comitê científico vinculado à entidade afirmou que uma única injeção, por toda a vida, já era suficiente para a população em geral. Entre as pesquisas destacadas na revisão, uma revelou que veteranos americanos da Segunda Guerra Mundial tinham anticorpos neutralizantes contra essa infecção mais de três décadas após a aplicação única. O Brasil adotou a nova postura em 2017.

Com o esquema completo, vacinas contra o sarampo e poliomielite também dispensam novas aplicações, salvo situações específicas (calma que nós chegaremos lá). O mesmo parece ocorrer com os imunizantes para HPV e hepatite B. Já a gripe exige doses anuais – pelo menos com os produtos disponíveis hoje no mercado.

“Do comportamento do agente infeccioso ao tipo de vacina, há vários motivos que explicam essas diferenças”, aponta Kfouri. Para complicar, essas razões estão entremeadas, ao ponto de nem sempre ser fácil distinguir o peso de cada uma.

Para entender melhor os pontos-chave envolvidos na duração do efeito das vacinas, vamos primeiro resumir como elas geram a chamada memória imunológica.

 

Memória

Ao primeiro sinal de ataque de um agente infeccioso, unidades do sistema imune que estão de prontidão coletam alguns exemplares do invasor (antígenos) – ou pedaços dos exemplares – e os levam até os linfonodos, pequenas estruturas espalhadas pelo corpo que estão repletas de células de defesa. “Aí começa uma conversa de comadre entre as células dendríticas, os linfócitos T e o linfócitos B”, brinca a imunologista Cristina Bonorino, professora titular da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e integrante dos comitês científico e clínico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI).

As células dendríticas basicamente apresentam o antígeno para os linfócitos T, que se preparam e passam a notícia da invasão para frente. Eles instigam os linfócitos B a se ativarem, multiplicarem-se e a produzir anticorpos específicos contra a infecção. Esses anticorpos, por sua vez, vão neutralizar o causador da doença. O problema: esse processo leva tempo, e até aí o invasor pode ter provocado estragos.

Só que os linfócitos B criados a partir desse primeiro ataque têm um quê de vingativos. Guardam na memória a capacidade de produzir anticorpos contra o inimigo em questão. E seguem se multiplicando no organismo indefinidamente – embora o ritmo de replicação caia com o passar do tempo. Diante de uma segunda ofensiva do agente infeccioso, essas células de memória imunológica são recrutadas e fabricam anticorpos mais rapidamente.

E as vacinas? Algumas inativam ou atenuam o agente infeccioso antes de mostrá-lo para o organismo. Outras exibem apenas proteínas-chave do invasor, ou ainda fazem o próprio corpo produzi-las. Independentemente da tecnologia, disparam a reação do sistema imune para que o corpo se prepare, sem a necessidade de sofrer com a doença. Quando necessárias, as doses de reforço entram em cena para, entre outras coisas, promover a multiplicação e ação dos linfócitos, além de aumentar a circulação de anticorpos.

Há, no entanto, fatores que interferem em diferentes etapas dessa resposta de longo prazo. E são eles que podem afetar a duração do efeito das vacinas.

 

O tipo de vacina

Há duas modalidades mais tradicionais de vacina: as que usam patógenos vivos, mas enfraquecidos (atenuados), ou as que os inativam. “Ao compará-las, há uma relação das vacinas de vírus vivo atenuado com menor necessidade de doses”, afirma a infectologista e epidemiologista Cristiana Toscano, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e integrante do Comitê de Experts em Vacina da OMS. Imunizantes contra sarampo, caxumba, rubéola e catapora estão entre os exemplos. Uma vez completado o esquema vacinal contra essas infecções, a proteção é prolongada.

“As versões atenuadas tendem a apresentar o patógeno de maneira mais completa. Mas há produtos com outras tecnologias que também garantem proteção por bastante tempo”, pondera Kfouri. Imunizantes contra hepatite A, hepatite B e HPV, por exemplo, não utilizam vírus vivos atenuados, e ainda assim parecem conferir uma longa proteção. 

Os motivos para isso são estudados e englobam fatores que discutiremos adiante. Mas um que vale abordar agora é o período de incubação do agente infeccioso. Se ele demora para se disseminar e provocar danos, o sistema imune tem mais tempo para reativar as defesas criadas pela vacina – mesmo que ela não tenha oferecido o patógeno completo para isso.

É o caso do vírus da hepatite B, que tem um período de incubação de 70 dias, em média. Ou do HPV, que começa a se manifestar entre dois e oito meses após a infecção – mas pode levar até 20 anos para isso.

No mais, cabe destacar que as vacinas com vírus vivo atenuado trazem riscos um pouco maiores e às vezes carregam contraindicações para grupos específicos da população, como os imunossuprimidos. E que as tecnologias mais recentes, como a de mRNA ou de vetor viral, talvez mudem essa lógica. “Acompanharemos os imunizados com esses tipos de vacina, que devem se multiplicar de agora em diante, para ver seus efeitos no médio e longo prazo”, atesta Bonorino.

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Para fechar esse tópico, é possível que combinações de vacinas com diferentes tecnologias influenciem na duração da proteção. Um estudo da Fiocruz Bahia publicado na Nature Medicine destaca que a eficácia da CoronaVac contra a infecção pelo SARS-CoV-2 caiu de 55% para 35% após 180 dias. Entretanto, uma dose adicional do imunizante da Pfizer/BioNTech após seis meses elevou esse índice para 93%.

 

O vacinado

A duração da proteção também depende do perfil de quem recebe a picada. A idade aqui tem papel preponderante. No caso dos diferentes tipos de meningococo que causam meningite, o número de doses recomendado na infância e adolescência não é pequeno – a SBIm preconiza que a vacina meningogócica quadrivalente seja aplicada duas vezes no primeiro ano de vida, uma vez entre os 12 e os 15 meses, uma entre os 5 e os 6 anos e uma aos 11 anos. Passado esse período, a necessidade de reforços despenca (palavras da SBIm: “Para adultos, dose única, a depender do risco epidemiológico ou condição de saúde”).  Por que as crianças devem tomar tantas picadas, mas adultos não? Resposta: esses meningococos dificilmente afetam adultos gravemente.

Idosos tendem a responder menos às vacinas e a apresentar sintomas mais graves de infecções. Até por isso, há um calendário vacinal dedicado a eles. “Isso tem a ver com o sistema imune dessas pessoas, que se torna menos eficiente”, explica Bonorino.

Há, aliás, outras condições que afetam as defesas do organismo, como HIV, gestação, má nutrição severa e uso de medicamentos que suprimem nossas defesas. Nessas situações, o esquema vacinal pode ser diferente. Se a vacina meningogócica B dispensa reforço para adultos em geral, para os imunossuprimidos existe uma sugestão de revacinação a cada dois ou três anos no site da SBIm.

 

O vírus

O caso da gripe é emblemático. O vírus influenza, além de ter subtipos que circulam pelo mundo em tempos diferentes, sofre mutações constantes que alteram partes de sua estrutura responsáveis por infectar as células. Aí os anticorpos produzidos pelos linfócitos B logo deixam de ser eficazes. “Por isso, atualizamos anualmente a vacina da gripe”, conta Bonorino. Mesmo assim, pessoas que só se vacinaram na campanha anterior continuam tendo algum grau de proteção contra o influenza no ano seguinte, mesmo que não tão satisfatório. 

As tecnologias mais recentes, que têm potencial de mirar diferentes partes do vírus menos afeitas a mutações, podem mudar esse cenário no futuro. Essa é uma perspectiva que vai além do caso da gripe – e que pode culminar em boas notícias para o controle de infecções que até hoje não contam com imunizantes, como o HIV.

“O HIV sofre mutações frequentes e escapa do nosso sistema imune por vários mecanismos”, aponta Toscano. Se a vacina se concentra em um, ele segue seu caminho por outro.

Mas tanto Cristina Bonorino quanto Cristiana Toscano estão otimistas. Segundo elas, o conhecimento e as tecnologias disponíveis hoje permitem vislumbrar um imunizante contra o vírus que causa a aids.

“A pandemia mostra que também precisamos de muito investimento financeiro e de pessoal para criarmos novas vacinas”, analisa Bonorino.

 

Os suscetíveis

Em 2020, o Brasil vacinou menos de 80% do público-alvo com a primeira dose do imunizante contra o sarampo. A meta é alcançar 95% com as duas doses do esquema vacinal.

Mas mesmo se o Brasil cumprisse o objetivo, isso significaria que 5% do público-alvo teria ficado para trás. Se isso se repetisse no ano seguinte, seriam mais 5% sem imunização adequada. E daí em diante. “Com o avançar do tempo, esse contingente pequeno começa a crescer. Muitas campanhas de vacinação têm o objetivo de alcançar a população não imunizada que se acumula durante os anos”, afirma Kfouri.

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Então por que várias dessas campanhas são voltadas para todo mundo, e não apenas para quem perdeu o momento certo de se proteger? Em primeiro lugar, porque fazer essa distinção não é fácil.

Além disso, campanhas indiscriminadas combatem a chamada falha vacinal. Uma vacina com eficácia acima de 95%, como o caso da do sarampo, é considerada muito boa. Ainda assim, ela não gera a proteção adequada em uma parcela pequena da população. Para essa turma, uma dose adicional pode ajudar a evitar a doença e sua propagação.

“Em toda campanha ou programa de vacinação, os profissionais avaliam esses e outros parâmetros. É o que se chama de cálculo de acúmulo de suscetíveis”, descreve Toscano.

As campanhas também são especialmente relevantes durante surtos. Nesses momentos em que a circulação do agente causador da doença está em alta, o risco de cruzar com ele sobe consideravelmente. Aí convém adotar medidas mais intensas para bloquear o avanço da doença. Há também situações em que doses de reforço são obrigatórias para quem vai visitar uma área endêmica, reduzindo o risco de a pessoa trazer a doença consigo, quando voltar.

Nesses casos, não é o efeito da vacina dentro de um indivíduo que define seu prazo de validade, mas sim seu potencial de ação na sociedade. Daí porque as vacinas são consideradas uma medida de saúde coletiva – e uma das mais eficazes ao longo de toda a história.

 

Theo Ruprecht é jornalista com foco nas áreas de saúde e ciência, e um dos criadores do podcast Ciência Suja

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