Novas tecnologias adaptam técnica CRISPR para diagnóstico de COVID-19

Questão de Fato
12 mai 2020
tesouras

 

A FDA, órgão do governo dos Estados Unidos que regula o mercado de alimentos e medicamentos, autorizou uma pequena empresa, com o sugestivo nome de SHERLOCK, a produzir emergencialmente um teste rápido para infecção pelo vírus SARS-CoV-2 que detecta o material genético do invasor em secreções de nariz e garganta, gerando resultados comparáveis aos dos testes laboratoriais de PCR – o padrão ouro para diagnóstico da COVID-19 – em menos tempo e in loco.

O teste desenvolvido pela SHERLOCK adapta o sistema CRISPR-Cas que bactérias usam, na natureza, para se proteger de vírus, e que também está na base das recentes tecnologias CRISPR de edição e manipulação genética.

Nas bactérias, o CRISPR-Cas reconhece e destroi vírus que já invadiram a bactéria antes. Quando esses vírus voltam a atacar, o sistema CRISPR produz sondas de RNA, chamadas crRNA, que reconhecem o material genético do vírus e se ligam a ele, direcionando uma enzima do tipo Cas, que age como uma tesoura molecular e "picota" o material genético do vírus nos pontos indicados pelas sondas.

A enzima Cas9, inicialmente descrita com o sistema CRISPR, reconhece e corta moléculas de DNA e foi adaptada para fazer edições de genoma. Vários grupos estudam esse sistema como uma estratégia de terapia gênica. Mas o uso original, das bactérias, era como defesa contra vírus. Alguns grupos estudam a possibilidade de usar essa habilidade de bactérias para desenvolver testes diagnósticos para doenças virais, e no futuro, terapias antivirais.  

Existe uma outra enzima da família Cas, a Cas13, que corta não DNA, mas moléculas de RNA viral. Aparentemente, as bactérias também são atacadas por vírus que têm RNA como material genético, como é o caso dos coronavírus humanos. Adaptando esse aparato, a pequena empresa de biotecnologia SHERLOCK (acrônimo para o inglês Specific High-sensitivity Enzymatic Reporter unLOCKing), desenvolveu seu teste diagnóstico para COVID-19.

O teste é muito simples: sintetizam-se sequências-guia para reconhecer genes específicos do SARS-CoV-2. Colhem-se amostras de secreções nasais e de garganta de pacientes com suspeita de COVID-19, da mesma maneira feita para os testes moleculares RT-PCR.

O sistema CRISPR-Cas13 reconhece o RNA do vírus de acordo com as sequências-guia, liga-se nessas sequências, e corta. O truque, que torna o processo extremamente elegante, vem em seguida. A Cas13 é o que chamamos de "enzima promíscua". Uma vez ativada pela sequência-guia, ela corta em qualquer lugar, qualquer pedaço de RNA está valendo. 

O produto da SHERLOCK aproveita essa característica e insere junto com o sistema um gene repórter luminescente, grudado a uma sequência de RNA. O gene só será ativado se a Cas13 estiver ativa e cortar esses pedaços de RNA. Ou seja, se o RNA do vírus estiver lá, as sequências-guia ativam a Cas13; uma vez ativada, a Cas13 acaba encontrando e cortando o RNA que veio grudado no gene repórter que, “liberado”, emite seu sinal luminoso.

Todo o processo leva menos de uma hora, não requer equipamentos caros, e os reagentes são de uso comum em laboratórios de biologia molecular. O teste se mostrou bastante sensível e específico. Nas 2 mil amostras analisadas para obter a autorização da FDA, não falhou nenhuma vez. Mas eram amostras já validadas como negativas ou positivas por RT-PCR. Certamente, o teste final será com amostras aleatórias, diretamente nos hospitais.

A empresa já está adaptando o SHERLOCK para que o gene repórter funcione em kits de teste instantâneos, que sejam fáceis de manusear e deem o resultado na hora, como testes de gravidez de farmácia. O teste, batizado de STOPCovid (Sherlock Testing in One Pot), permite que todas as reações químicas necessárias para detecção do vírus sejam feitas em temperatura ambiente, ou no máximo precisando incubação a 60°C. A tecnologia não foi usada ainda diretamente em pacientes, mas foi testada com amostras de secreção nasal e de garganta, e também em saliva, e funcionou. Se for validada em saliva, pode ser uma excelente opção para usar em locais de atendimento por profissionais não treinados, e até pode-se pensar em adaptá-lo para um kit de uso domiciliar.

Outra empresa que trabalha com CRISPR, a Mammoth Biosciences, publicou recentemente na revista Nature uma plataforma semelhante, chamada Detectr. Neste caso, o sistema já foi desenhando para funcionar também em testes instantâneos. Esse produto ainda não foi liberado pela FDA, mas mostrou bons resultados em estudos, alcançando 95% de sensibilidade e 100% de especificidade.

As maiores vantagens destes testes que usam CRISPR são preço e acessibilidade. Os testes de RT-PCR são caros e de difícil execução, exigem profissionais treinados e equipamentos e laboratórios especializados. Os reagentes são caros e os equipamentos não estão disponíveis em todos lugares, principalmente em países em desenvolvimento. Já os testes rápidos de anticorpos têm a única vantagem de serem rápidos, porque são imprecisos, geram muitos falsos positivos e negativos e não servem como diagnóstico.

Os testes de CRISPR são precisos e detectam o RNA do vírus, exatamente como o RT-PCR, mas com a vantagem de utilizar reagentes comuns e mais baratos, e de não precisarem de equipamentos sofisticados. Além disso, uma vez validado o método, e os kits de detecção para pontos de atendimento, fica fácil adaptar as sequências-guia para outros vírus, constituindo um teste versátil, de rápida produção, para outras viroses.

Na ausência de uma vacina, a melhor estratégia é testar, identificar e isolar. Testes como estes seriam muito bem-vindos no Brasil, onde, por questões de financiamento e logística, não temos como testar a população em massa com o RT-PCR.

 

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência e coautora do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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