Pentágono alerta para discos voadores? Não, drones

Questão de Fato
1 out 2019
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Captura de tela de vídeo divulgado pelo New York Times
Captura de tela de vídeo divulgado pelo New York Times

Em meados de setembro, veículos de imprensa normalmente tidos como sóbrios, comedidos e ponderados, como a revista Time  e o Washington Post,  e outros talvez nem tanto, como o UOL e a Fox News, viveram uma espécie de surto ufológico. Isso porque a Marinha dos Estados Unidos admitiu, em caráter oficial, que uma série de três vídeos, publicados ao longo de 2017 e 2018 pelo New York Times  e pela produtora de documentários To The Stars Academy (TTSA) mostram, de fato, “fenômenos aéreos não identificados”. 

Ninguém, é claro, disse abertamente que esses “fenômenos”, registrados pelas câmeras infravermelhas de aviões militares, são aliens, mas... enfim. “Aliens”. Na ausência da insinuação, por tênue que seja, não haveria lá muita razão para a mídia publicar o material: sem toda a subcultura ufológica para criar relevo e contexto, “Marinha não sabe o aparece nestes vídeos” não representa matéria-prima de manchete. 

A TTSA tem, na propagação da ufologia, um modelo de negócio: seu produto mais recente foi uma série sobre discos voadores para o History Channel. A imprensa em geral, por sua vez, embarca na história pelo inusitado: avistamentos de óvni ainda são um jeito de encher linguiça um pouco mais respeitável do que assombrações ou poderes telepáticos.  O New York Times, especificamente, parece ter um forte laço afetivo com o pessoas da To The Stars Academy.

Aos fatos, então: em 11 de setembro, The Black Vault, um site que reúne documentos liberados pelo governo americano sobre uma série de assuntos meio “escusos” – óvnis, lavagem cerebral, armas secretas – e mistura isso com jornalismo investigativo e uma certa dose de teorias da conspiração, publicou declarações de um porta-voz da Marinha, Joseph Gradisher, sobre os vídeos de 2017 e 2018.

Ao Vault, Gradisher reconhece que o material é autêntico; que foi vazado, e não liberado, como o NYT  e a TTSA haviam dito originalmente; que o primeiro vídeo data de 2004 e os dois últimos, de 2015. É bem provável que os dois vídeos de 2015 sejam, na verdade, trechos diferentes de uma mesma gravação. Gradisher acrescenta que os “fenômenos” (ele é explícito em usar essa palavra, e não o termo mais comum, “objetos”) que aparecem nos vídeos são considerados “não-identificados” pela Marinha.

E é isso. Ponto.

Considerações: o uso de “fenômeno” não é um mero eufemismo. Escrevendo para a revista Skeptical Inquirer, o major reformado da Força Aérea Americana (e astrônomo) James McGaha explica que muitas vezes o que se interpreta como um óvni “não está voando e nem é um objeto” – por exemplo, flashes de luz na lente de uma câmera, ou holofotes refletidos nas nuvens. 

No caso dos objetos/fenômenos nos vídeos da Marinha americana, há uma possibilidade razoável de que parte do que os torna misteriosos, como algumas "auras" brilhantes, represente artefatos – isto é, ilusões produzidas por características técnicas do equipamento – do processamento das imagens. Há uma boa análise a respeito aqui.

Enfim – as declarações de Gradisher ao Vault levaram alguns dias para serem notadas pela grande mídia e, assim que isso aconteceu, a coisa toda virou festa. O bom é que, com isso, novos esclarecimentos vieram à tona. A revista Time foi entrevistá-lo, e o porta-voz da Marinha disse que esses fenômenos preocupam na medida em que podem representar objetos que invadem espaço aéreo militar. 

Mas o problema não são os alienígenas ou mísseis norte-coreanos, e sim brinquedos civis. Com a popularização dos drones e quadcópteros, afirmou ele, essas “incursões não autorizadas” sobre áreas militares tornaram-se um tipo de evento comum e, por isso, preocupante.

“O motivo por que estou falando disso é para ressaltar a importância do problema”, disse ele à revista. “Essas incursões representam um risco para os aviadores e afetam a segurança das operações”. 

Essa conversa oblíqua sobre discos-voadores vai conscientizar os donos de drones dos Estados Unidos? É esperar para ver. Claro, do ponto de vista de quem curte promover um "mistério", seja por lazer ou comércio, sempre dá para apontar que, não importa se a maioria dessas incursões incômodas representam drones civis, o resíduo dos casos não identificados continua por aí. É verdade.

Mas esse resíduo é muito melhor visto como fruto da limitação humana (nossa incapacidade de sempre reunir toda a informação necessária sobre todos os fenômenos que chamam nossa atenção) do que como característica dos fenômenos em si. O apelo à ignorância, a manobra retórica de tentar tirar conclusões sobre algo partindo única e exclusivamente do fato de que não sabemos o que esse "algo" é, funciona muito bem na poesia e na ficção, mas é inadequado na ciência. Quem tenta construir hipóteses partindo da ignorância dos fatos literalmente não sabe do que está falando.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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