Videogame, armas e massacres: a evidência

Questão de Fato
15 mar 2019
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Esquema mecânico de pistola automática

Comentários de autoridades públicas e na mídia sobre a tragédia na cidade de Suzano (SP), em que dois jovens invadiram uma escola e mataram sete pessoas, antes de tirar as próprias vidas, trouxeram à tona o debate sobre a influência de videogames violentos e realistas sobre os comportamentos dos jogadores no mundo real. Levantam-se duas questões: os jogos estimulam a agressividade? Dá para debitar massacres assim na conta dos games?

A melhor evidência disponível aponta uma relação entre o consumo de games violentos e agressividade – mas a natureza dessa relação, sua intensidade e interpretação, são questões mais complicadas do que parecem. Se alguém quiser respostas rápidas para as questões do parágrafo acima, elas são “sim” e “não”. Quem quiser conhecer as nuances do assunto pode seguir lendo.

Assim como os massacres escolares, esse tipo de discussão vem da América do Norte. Um relatório da Associação de Psicologia dos Estados Unidos (APA) sobre o assunto, publicado em 2015, afirma que, desde o massacre de Columbine, em 1999, “a mídia aponta para os hábitos de videogame dos criminosos, como forma de treinamento ou como razão para os crimes”.

A APA fez uma revisão de 31 estudos a respeito da influência dos videogames sobre a agressividade. O que talvez seja a conclusão mais relevante, dado o clima atual, é que não foi encontrada evidência de relação entre videogame e comportamento criminoso. Mas foi encontrada relação com pensamentos, emoções e comportamentos agressivos. Game violento também tende a deixar a garotada mais malcriada.

“O uso de videogames violentos tem um efeito sobre a agressão”, conclui o relatório. “Esse efeito se manifesta no aumento de desfechos negativos, como comportamento agressivo, cognição e sentimentos agressivos, e queda em desfechos positivos, como comportamento pró-social, empatia e sensibilidade à agressão”.

Por trás dessa conclusão geral, no entanto, espreitam duas perguntas: o que conta como “agressividade”? Qual a relevância da associação disso com os games?

Quanto à primeira: muitas medidas de agressividade em estudos psicológicos são indiretas, talvez pouco confiáveis (questionários, por exemplo) e – para quem olha de fora – até meio cômicas, como disparar uma buzina na orelha de alguém, ou encher a comida de outra pessoa de pimenta. O modo como essas medidas se traduzem em comportamentos no mundo real, fora do laboratório, é uma incógnita.

Para responder a essa crítica, no fim do ano passado o grupo do pesquisador Jay Hull publicou, no periódico PNAS, uma meta-análise – um estudo que congrega os resultados de diversos outros trabalhos sobre um mesmo tema – buscando uma associação específica entre videogames violentos e agressões físicas. Mesmo restringindo o universo de pesquisa dessa forma, Hull ainda assim encontrou uma relação, mas muito baixa – um tamanho de efeito de 0,08.

E esta é a segunda pergunta: dada a relação por estabelecida, seria ela relevante? “Tamanho do efeito” é uma medida estatística, normalmente interpretada como a força da relação entre duas variáveis. Um efeito de tamanho “1” significa que a relação é completa: uma variável segue perfeitamente a outra. Um efeito de “0” é o oposto: uma não tem nada a ver com a outra. Efeitos negativos sugerem que uma segue no rumo oposto da outra. Uma correlação positiva de 0,08, ou 8%, tem alguma importância prática? Trata-se mais de uma questão política do que científica.

O relatório de 2015 da APA diz que, no apanhado dos estudos disponíveis até então, o tamanho da relação entre videogames violentos e comportamento agressivo (incluindo buzinar e pôr pimenta no prato do vizinho) fica numa média de 0,37, podendo ir de 0,19 a 0,56. Em comparação, estudo publicado ano passado encontrou uma relação entre o uso de drogas ou álcool e violência (não mera agressividade) com tamanho de efeito médio de 0,45 (de 0,36 a 0,54).

No campo oposto ao de Hull, Christopher J. Ferguson é um pesquisador da relação entre mídia, games e violência que considera a literatura sobre o assunto pouco confiável e vê os tamanhos de efeito detectados nesses estudos como desprezíveis para fins práticos.

Armas e famílias

Mas, afinal, existe alguma informação científica sólida sobre os fatores de risco que levam a massacres em escolas? Um artigo que se propunha a listar esses fatores chegou a ser publicado em 2000, mas acabou retratado – isto é, declarado inválido e removido da literatura científica – a pedido do próprio autor, em 2001.

No ano passado, no entanto, saiu um relatório que se propõe a avaliar a literatura científica a respeito de violência juvenil com armas de fogo. Os autores definem violência como “qualquer comportamento que pretenda causar grave prejuízo físico, como ferimentos ou morte, numa pessoa que não deseja ser prejudicada”. Eles prosseguem dividindo violência juvenil armada em “tiroteios em massa” e “tiroteios de rua”.

“Tiroteios em massa ocorrem em locais públicos como escolas, igrejas, cinemas, shoppings e salas de espetáculo e são relativamente raros. São chocantes e devastadores, porque frequentemente incluem inúmeras vítimas atingidas ao acaso. Tiroteios de rua ocorrem em zonas urbanas, frequentemente envolvem antagonistas que se conhecem, são muito mais comuns” e, embora produzam muito mais vítimas que os tiroteios em massa, não atraem tanta atenção da mídia.

Os autores apresentam listas de diferenças entre tiroteios de rua e tiroteios em massa, e de fatores de risco ambientais e pessoais. Entre os pessoais estão descontrole emocional e obsessão com armas e morte; entre os ambientais, aparecem acesso fácil a armas de fogo, exclusão social, violência doméstica e, também, a mídia.

“É ilógico presumir que a publicidade, uma indústria avaliada em US$ 500 bilhões em 2016, pode influenciar o comportamento de consumidores, mas que a o conteúdo violento da mídia não influencia comportamento agressivo”, ponderam.  A associação entre comportamento violento criminoso – e não apenas um aumento de agressividade – e exposição à mídia contraria as conclusões do relatório da APA de 2015, que não via evidências de ligação causal.

De qualquer modo, a massa de estudos a respeito indica que conteúdo midiático, seja sob a forma de videogames ou filmes, séries, etc., é apenas uma peça, provavelmente pequena, no quebra-cabeças da violência juvenil. Fatores que vão da personalidade do jovem ao ambiente familiar,  e às relações sociais mais amplas (bullying escolar, álcool, drogas) têm influência maior e mais clara. Mas não há como negar que o fósforo no pavio é o acesso fácil a armas de fogo.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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