Ciência recomenda veto a lei da cesárea em SP

Editorial
18 ago 2019
Saúde do bebê ou fantasia política?

A solução para a violência obstétrica no Sistema Único de Saúde (SUS) é aumentar o número de cesáreas, sem indicação médica, a pedido da mãe. Este é, em resumo, o raciocínio por trás do Projeto de Lei 435/2019, apresentado pela deputada Janaina Paschoal (PSL) e aprovado pela Assembleia Legislativa de São Paulo, por 58 votos a 20. 

Segundo a parlamentar, as usuárias do SUS são frequentemente privadas de anestesia e da presença de um acompanhante durante o parto normal  – situações que, raras ou corriqueiras, são de fato inaceitáveis – e haveria uma suposta insistência fanática dos profissionais de saúde da rede pública em fazer o parto natural, “a qualquer custo”, o que resultaria em casos de anóxia (falta de oxigênio no cérebro do recém-nascido). 

Esses problemas, cuja prevalência devemos aceitar como artigo de fé, já que a exposição de motivos do projeto de lei é tímida na apresentação de evidências, seriam plenamente resolvidos com uma medida “simples”: deixar que a parturiente escolha o tipo de parto livremente, independente de indicação médica, a partir da 39ª semana de gestação. 

A deputada não oferece dados estatísticos sobre as condições no SUS, ou pesquisas científicas que comprovem sua hipótese correlacionando parto normal a anóxia e sequelas.  Além disso, mesmo aceitando a premissa de que a violência obstétrica no SUS seja real e corriqueira, não parece ocorrer à deputada que fatores de fundo – como equipes reduzidas, treinamento ou instalações inadequados – são mais determinantes do que o tipo de parto. 

Também é inverossímil, para dizer o mínimo, pressupor, como a rationale do projeto implica, que a grande maioria dos funcionários do SUS integre algum tipo de seita cruel e dogmática, dedicada a realizar partos normais de qualquer modo e a qualquer custo, a despeito das condições médicas objetivas. 

Misturando os méritos

Os argumentos da lei são confusos e misturam dois temas distintos: um, a falta de analgesia para o parto normal; outro, a real necessidade de cesáreas. Cada coisa no seu lugar: deve-se garantir a analgesia para o parto normal, e deve-se garantir a cesárea de emergência, por indicação médica, caso exista risco para a saúde da mãe ou do bebê. 

Os problemas devem ser resolvidos em sua raiz, e não por paliativos, que por sua vez criam mais problemas.  A solução para a falta de analgesia é obter analgesia, não aumentar o número de cesáreas. A solução para a violência obstétrica é fiscalizar e punir os responsáveis, não aumentar o número de cesáreas. E, finalmente, a solução para fazer cumprir uma lei que já existe (Lei No 15.759/2015) – e que prevê o direito da gestante a atendimento humanizado, com analgesia, acompanhante e pré-natal – é efetivamente fazer cumprir a lei, e não criar uma nova lei e aumentar o número de cesáreas! 

Profissionais

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) emitiu um parecer favorável ao projeto de lei. O órgão “repudia discursos de ódio contra a categoria médica, que tentam taxar esses profissionais de mercantilistas quando, na verdade, o que se percebe é que o interesse econômico está do lado de quem acusa: em querer, com falsa ciência e com discursos ideológicos, demonizar rotinas médicas seguras e consagradas na assistência médica obstétrica em troca de práticas empíricas, desprovidas de ciência e que os estudos têm demonstrado resultados, no mínimo, preocupantes”. 

...“o Cremesp tem instruído e julgado vários processos ético-profissionais em que os eventos adversos foram decorrentes da demora em se realizar cesariana e pelas complicações da insistência em ultimar partos vaginais. E que, muitas vezes, as complicações tiveram início justamente na forma de condução da assistência ao trabalho de parto sem contar com a participação efetiva de profissionais médicos. E que estes são chamados a intervir somente após as complicações, assumindo o ônus do processo.”

 O Cremesp parece sofrer do mesmo mal da parlamentar, e combate inimigos imaginários, em vez dos reais. Se um parto apresenta complicações, ou pior, se o parto ocorre na ausência do profissional médico, e isso resulta em sequelas para a parturiente ou bebê, mais uma vez, a solução é fiscalizar e punir os responsáveis, e não aumentar o número de cesáreas. 

A Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp) emitiu parecer contrárioà aprovação da lei, pedindo o veto do governador, e alegando que não há evidências cientificas para embasar a lei; a lei desconsidera os riscos relacionados à cirurgia, e fere a autonomia da mulher ao exigir que tome uma decisão racional em um momento de tamanha vulnerabilidade emocional, como é o trabalho de parto. A cesárea aumenta os riscos de internação em UTI, histerectomia, ruptura do útero, placenta acreta, placenta prévia, gravidez ectópica. Quanto maior o número de cesáreas que a mulher realiza, maior o risco. Os riscos para a saúde do bebe também já foram enumerados aqui, expondo o recém-nascido a maior risco futuro de alergias, inflamações crônicas, obesidade e diabetes. 

A diferença de conduta do Cremesp e da Sogesp é notável: o Conselho age como entidade sindical, pondo supostos interesses de classe acima da evidência científica em suas argumentações. Já a sociedade científica tenta defender a ciência e os interesses da gestante e do recém-nascido. O Conselho também desconsidera os riscos de processo e danos a imagem que seus membros poderão sofrer, caso a cesárea seja requisitada e os médicos não puderem cumprir a nova lei por falta de equipe adequada, instrumentos ou instalação. 

Se sancionada, a lei produzirá uma cascata de consequências que seus defensores parecem felizes em ignorar. Como garantir o número de profissionais necessário para atender a uma possível demanda crescente de cesáreas? Se os profissionais já carecem de tempo, treinamento ou instalações para oferecer um atendimento humanizado às gestantes, por que isso mudaria – como num passe de mágica – no momento em que elas são submetidas a um procedimento muito mais invasivo, de muito mais risco? 

Como lidar com o custo de um dia a mais de internação, exigido nos casos de cirurgia, quando comparados ao parto normal? E o custo de tratar os riscos de complicação que acompanham a cesárea? E a logística doméstica para a recuperação após a cirurgia, que por algum tempo compromete a capacidade da parturiente para desempenhar várias funções corriqueiras do dia-a-dia? 

A deputada tem a resposta pronta: não vai mudar nada, nem onerar o sistema, porque o médico recebe o mesmo pagamento, qualquer que seja o tipo de parto. As outras variáveis, parece, foram convenientemente ignoradas. 

Voltamos a lembrar que já existe uma lei, promulgada em 2015, e sancionada pelo então governador Geraldo Alckmin – antecessor no cargo e padrinho político do atual ocupante do Palácio dos Bandeirantes –, que promove os direitos da gestante. Trata-se de uma lei clara e abrangente, que se for devidamente aplicada, resolve todos os problemas que motivaram a iniciativa da deputada do PSL. A nova lei é confusa, incompatível com seu próprio objeto, e embute o potencial de gerar um problema de saúde pública. 

Recomendamos o veto ao governador Joao Dória, para que a ciência e a saúde da mulher sejam respeitadas. 

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