Muito lobby, pouca ciência: OMS e a Medicina Tradicional Chinesa

Editorial
24 jun 2019
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Ilustração de conto de fadas chinês

Em um distrito de Hong Kong, cavalos-marinhos secos são vendidos como remédios para curar problemas de disfunção erétil, ejaculação precoce e asma. Na África, um mercado que movimenta aproximadamente US$ 2 bilhões é um dos grandes responsáveis pela diminuição da população de asnos: da pele deste animal extrai-se uma gelatina que é vendida como remédio para conter hemorragia e combater tosse e câncer. Uma caixa de 250 g desta panaceia, chamada de eijiao, custa algumas centenas de dólares

Pedaços dos corpos de tigres, ursos e rinocerontes também são utilizados para alguma finalidade terapêutica de acordo com os preceitos da chamada medicina tradicional chinesa (MTC). Não é preciso ser um especialista da área de saúde para concluir que um medicamento de amplíssimo espectro, algo que se arroga a capacidade de “curar” desde tosse até câncer, não passa, na melhor das hipóteses, de um potente placebo. 

A MTC pressupõe que uma série de meridianos percorre o corpo humano, meridianos por onde flui a energia vital (qi, ou chi), responsável pela saúde. Enfermidades são normalmente relacionadas a interrupções do fluxo dessas energias em determinados pontos do corpo. Esses bloqueios energéticos podem ser eliminados pela aplicação de agulhas (acupuntura) ou ventosas (moxibustão). 

Não existe nada científico que ateste a existência desses canais energéticos por onde fluiria o qi. Há uma interessantíssima discussão mitológica e histórica sobre a ligação entre a ideia de que o corpo humano teria doze meridianos de energia e o fato de que havia doze rios conhecidos pela civilização chinesa nos tempos do Imperador Amarelo, que teria reinado por volta de 2500 AEC. Mas, por mais fascinantes que sejam, alegorias geográficas e contos de fadas – chineses, europeus, africanos, sul-americanos, não importa – não são guias confiáveis para a anatomia humana.

Milhões de dólares já foram gastos em testes randomizados para verificar se as práticas da MTC (incluída aqui a mais famosa delas, a acupuntura) funcionariam melhor do que um placebo. Não existe nenhuma evidência robusta de que essas práticas milenares chinesas funcionem. 

Certos remédios tradicionais baseados em plantas realmente contêm moléculas biologicamente ativas – algumas benéficas para certas condições de saúde, outras tóxicas – mas tanto os benefícios quanto as toxicidades são constatados por pesquisa médica e farmacológica de caráter científico, que nada tem a ver com hipóteses tradicionais a respeito de energia vital. Interações bioquímicas, não qi, explicam os efeitos. E os medicamentos comprovados dessa maneira, como a droga artemisinina, passam a fazer parte do repertório universal da Medicina, sem necessidade de qualquer rótulo “tradicional”.

Assim como ocorre com a quase totalidade das chamadas práticas integrativas e complementares (PICs), os estudos positivos que endossam a utilização de terapias que ainda se aferram ao rótulo da "tradição" têm péssima qualidade e aparecem em periódicos de reputação discutível. Neste link é possível encontrar grandes levantamentos de estudos sobre a eficácia da acupuntura, separados por enfermidade: as conclusões são fortemente negativas.

Mas a falta de evidências a respeito da eficácia da MTC somada, ainda, às crenças associadas que contribuem para a morte estúpida de animais, incluindo membros de espécies em extinção, não basta para que a prática seja reduzida ao caráter meramente folclórico que merece: a MTC foi incluída no último volume, o décimo-primeiro, da Classificação Internacional de Doenças (CID), publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A CID é um documento importantíssimo para a saúde pública global, orientando desde a formulação de categorias para levantamentos estatísticos sobre saúde e doença como políticas de cobertura de serviços públicos e privados de saúde. 

Uma nota a OMS diz que a organização não endossa a utilização da MTC, nem recomenda nenhum tratamento “tradicional” específico, mas que a inclusão dá aos médicos a chance de diagnosticar os pacientes utilizando tanto as categorias da MTC quanto as da medicina “ocidental”.

A linguagem da OMS em relação às chamadas medicinas tradicionais sempre foi ambígua. Partindo de princípios que são pouco mais do que mero bom-senso – como o de que é contraproducente ignorar os usos e costumes peculiares de cada povo em relação à saúde e à doença (o combate ao ebola no Congo, por exemplo, requer o apoio de curandeiros tribais), a Organização realiza uma ginástica semântica e passa a promover a adoção, em larga escala, de tratamentos tradicionais, mesmo que fora de suas bases étnico-culturais de origem, desde que tenham “apoio em evidências”. 

Mas, se há apoio adequado em evidências, por que não incorporar esses tratamentos à base universal da medicina baseada em ciência? Se há evidências, por que não recomendar procedimentos específicos? 

A OMS não se furta a recomendar procedimentos científicos baseados em boa evidência, como vacinações. O cinismo da Organização ao usar a linguagem das evidências para se referir a terapias tradicionais baseadas, quando muito, em folclore, e ao assumir um papel público em sua promoção, ao mesmo tempo em que se nega a assumir o peso da responsabilidade de recomendá-las, é palpável.

E por que a organização não assume essa responsabilidade? Porque, a despeito do que dizem os dirigentes e os políticos, seus técnicos e cientistas sabem que o alardeado “apoio em evidências” das práticas ditas tradicionais é risível, inexistente ou inadequado, que essas terapias não passam – na melhor das hipóteses – de placebos.

A MTC sempre foi um dos grandes objetos de marketing da China, desde a segunda metade do século passado. Ela foi popularizada, principalmente, na época de Mao Zedong, que a viu como uma forma barata de levar algum tipo de atendimento médico, ainda que precário, a todo o país, na época da revolução comunista. Apesar de, segundo seu médico privado, tratar-se apenas com a medicina ocidental e não acreditar na MTC, o líder comunista via nessas terapias uma maneira eficiente de promover a imagem da China no exterior. 

Terapias tradicionais em geral, e a MTC em particular, ganharam especial destaque na OMS no período em que a Organização foi encabeçada por Margaret Chan. Médica nascida em Hong Kong, Chan foi diretora-geral da OMS de 2007 a 2017. 

Decisões da OMS deveriam se embasar somente na ciência, e não se dobrar a interesses político-comerciais de países-membros. A inclusão da MTC no último volume da "International Classification of Diseases", o CID-11, não tem base em nenhuma evidência científica. 

Ao incluir categorias de diagnóstico da MTC no principal guia global de doenças, a OMS oferece uma pátina de legitimidade à superstição dos meridianos e forças vitais. Por exemplo, o diagnóstico SG26, presente no novo catálogo, permite atribuir sintomas que podem ser sinais de uma doença grave como meningite (dor de cabeça intensa, forte dor na espinha) a uma “disfunção do meridiano da bexiga”. 

Outras “doenças” agora abraçadas pelo CID incluem “padrão de estagnação do qi no fígado” e “padrão de meridiano energizante triplo”. Não importa quantos disclaimers  e ressalvas os burocratas da Organização Mundial da Saúde ofereçam (por exemplo, de que o capítulo sobre MTC no CID-11 é de “uso opcional”): é quase impossível olhar para o novo CID e não imaginar que, para a OMS, mitologia, folclore, charlatanismo e mistificação agora têm o mesmo status que pesquisa científica séria.

De maneira análoga, aqui no Brasil o Conselho Federal de Medicina, um órgão de classe, fecha os olhos para a questão da legitimidade científica e reconhece a acupuntura e, pior ainda, a homeopatia, como práticas médicas. E nosso Ministério da Saúde permite que o Sistema Único de Saúde patrocine mais de duas dezenas de terapias cuja base de evidência é tão ou mais frágil que a da MTC. 

Parece que, seja nos salões de Genebra, onde fica a sede da OMS, nos conselhos de classe ou nos gabinetes ministeriais, os interesses de quem tem crendices a vender falam mais alto do que a saúde do público que essas organizações, conselhos e ministérios deveriam proteger. Trata-se de uma falha sistêmica, trágica e, ao que parece, universal.

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