Os alicerces da ciência das mudanças climáticas

Dossiê Questão
15 abr 2019
Primeira ilustração

Os estudos sobre as mudanças climáticas e o conhecimento científico mais elementar, como o fato de a Terra ser redonda e orbitar o Sol, entraram na berlinda. Grupos que ignoram os meandros da ciência passaram a pôr em questão um conhecimento sedimentado ano após ano. Alguns dos conceitos agora criticados, como também a Teoria da Evolução, resistem ao escrutínio científico há muito tempo, Nem a evolução, nem o geocentrismo ou a mudança climática foram impostos pela autoridade de um único cientista, ou acatados por achismo. A ciência climática segue o chamado método científico: hipóteses são postas a teste todo o tempo, e cada confirmação é apenas uma etapa no caminho do desafio seguinte. É assim que a roda do conhecimento avança.

A ciência embarcada na área das mudanças climáticas reúne conhecimentos absorvidos da física, da química, da biologia, da geologia, da paleontologia e também da matemática. Os estudos sobre o clima são alimentados por uma combinação robusta entre medições feitas no mundo real, seja sobre o nível do mar ou das temperaturas em diferentes locais, e modelos matemáticos bastante sofisticados. Com este conjunto de equações, os cientistas conseguem processar um enorme volume de dados e perceber as tendências de comportamento das variáveis estudadas.

O prêmio Nobel dado ao IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) em 2007, dividido com o ex-vice-presidente americano Al Gore, jogou luz sobre um trabalho que na época já era feito há mais de dez anos, por centenas de pesquisadores espalhados pelo mundo.

O grupo nasceu em 1988, quando as pesquisas começaram a indicar que o ser humano estava alterando o funcionamento do clima no planeta. O chamado quarto relatório-síntese, feito pelos vários grupos de cientistas que integram o IPCC, publicado em 2007, concluiu que a ação humana é provavelmente a maior responsável pelo aquecimento global medido nos últimos 50 anos. Depois disso, o relatório seguinte, o quinto, publicado em 2013, reforçou ainda mais o peso do homem nas alterações climáticas.

No caso do quinto relatório-síntese, o capítulo que discute as bases físicas das mudanças climáticas contou com a colaboração de 259 pesquisadores de 39 países. O grupo trabalhou cinco anos no estudo. Os dois resultados mais emblemáticos, alicerçados em medições científicas rigorosas e em modelos que evoluem a cada ano, e simulam as principais interações físico-químicas da natureza, estão matematicamente embasados.

Os modelos climáticos são representações matemáticas das interações que ocorrem entre o Sol, a atmosfera, os oceanos, o gelo e a superfície terrestre. Um modelo é feito para apontar tendências e não adivinhar um determinado evento. Este conjunto de equações consegue indicar se o próximo verão será muito quente e chuvoso, mas não vai dizer se vai chover no Ano Novo, com meses de antecedência. Para saber se os resultados apresentados são confiáveis, os cientistas testam as equações contra o passado. Ou seja, os modelos usados para estimar as mudanças climáticas até 2100 precisam indicar com precisão as mudanças climáticas observadas no passado, durante o século 20. Fato que ocorreu com as simulações matemáticas feitas pelos cientistas.

Mudança em curso

O aquecimento do sistema climático é inequívoco, cravaram os cientistas. E, desde 1950, várias das mudanças observadas in loco, na natureza, não têm precedentes em relação às décadas ou milênios anteriores. Os cientistas demonstraram que a atmosfera e o oceano ficaram mais quentes. As quantidades de neve e de gelo diminuíram. O nível do mar está subindo. As concentrações de gases de efeito estufa aumentaram.

Segunda ilustração

Mas o que está causando a mudança? Perguntaram também os cientistas, em busca de um consenso, sempre  difícil de ser atingido. Os dados mostram, de forma enfática, que a influência humana no sistema climático é inegável. O que o relatório quatro havia indicado, o cinco corroborou. Desde meados do século 19, quando o processo da revolução industrial teve início, as concentrações atmosféricas de dióxido de carbono, metano e outros gases aumentaram em quantidades sem precedentes em comparação com os últimos 800 mil anos.

Quando as simulações do clima na Terra foram feitas, mais uma vez, com modelos matemáticos que analisam muitas variáveis ao mesmo tempo, ficou claro que as temperaturas médias das últimas décadas seriam mais frias do que as observadas, se o aumento das concentrações de gases causadores do efeito estufa, potencializado pelo homem, fosse eliminado das estimativas. A diferença foi registrada em todos os continentes do planeta.

As concentrações de dióxido de carbono, por exemplo, aumentaram 40% em relação ao período pré-industrial. Primeiro, porque a queima dos combustíveis fósseis, que libera o gás para a atmosfera, cresceu. E, segundo, porque a mudança do uso da Terra, como o aumento do desmatamento das florestas, inclusive no Brasil, nos casos da Amazônia e da Mata Atlântica, também joga mais CO2 no ar.

Os mares absorvem 30% do dióxido de carbono liberado pela atividade humana, o que causa o aumento da acidificação das águas oceânicas. Em se tratando dos oceanos, as medições e os modelos também mostram, de forma robusta, que a elevação do do nível médio do mar mudou de ritmo.

Entre 1901 e 2010, o nível médio do mar, em todo o globo, subiu entre 0,17m e 0,21m. Mais do que havia subido nos dois mil anos anteriores. As massas de gelo da Groenlândia e da Antártida também estão menores nas últimas décadas. As águas na camada superficial dos oceanos, até 700 m, também estão mais quentes.

Fatos, não opiniões

“Ciência não é questão de opinião”, afirma Jefferson Cardia Simões, um dos principais glaciologistas brasileiros, sobre as críticas recentes que tentam minar a ciência que embasa as mudanças climáticas globais. O pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que também trabalhou em grupos do IPCC, diz que quase todos os sinais vindos do gelo, de várias partes do mundo, apontam para a mesma direção. As temperaturas médias do planeta aumentaram e, por isso, a quantidade de gelo tem diminuído.

Terceira ilustração

“Nos Andes, o gelo está desaparecendo muito rapidamente. Em regiões do Peru, em Laz Paz, na Bolívia, e no norte da Argentina. É um processo que gera impacto social, porque estas regiões dependem do gelo dos Andes como fonte hídrica”, afirma o pesquisador.

O caso do Ártico, onde tanto a área quanto a espessura do mar congelado estão menores, é o mais emblemático, diz Simões. “Tanto as mudanças estão ocorrendo, que as rotas de navegação naquela parte do globo estão ficando abertas [sem gelo] por muito mais tempo do que no passado”, diz o pesquisador gaúcho. “Inclusive, o Kremlin tem feito mudanças estratégicas em sua política para a região ártica”.

Como relata o jornalista Claudio Angelo, em seu livro “A Espiral da Morte” (Companhia das Letras), uma visita à geleira de Upernavik, no oeste da Groenlândia, escancara o que os dados medidos pelos pesquisadores dizem.

“O aquecimento global está mais ou menos literalmente estampado” nas rochas da geleira, escreve o autor. Na parte alta, o gnaisse está coberto por uma pátina escura, indicando uma longa exposição ao ar e às intempéries. Mas na parte de baixo, com alguma dezenas de metros de altura até o início do gelo, a rocha é marrom-clara.

A divisão revela onde o gelo estava em 2005. A medição dos cientistas no local mostra que, de um ano para outro, a geleira rebaixou cem metros, expondo as rochas que então estavam cobertas. A mudança do comportamento do gelo na Groenlândia tem causado até tremores de terra na região, o que preocupa os moradores.

Nem sempre derretimento do gelo causa aumento do nível médio do mar. Quando derrete, o gelo que se encontra flutuando sobre o oceano não altera o nível das águas. Mas o derretimento das geleiras localizadas em terra, como os mantos de gelo tanto da Groenlândia quanto da Antártida, além da neve que derrete das geleiras, vai sim interferir na subida das águas.     

Futuro

Com base nos cenários descritos desde o início da era industrial, uma nova pergunta científica surgiu entre os milhares de pesquisadores que estudam, de forma sistemática, o clima na Terra. Como as mudanças climáticas vão afetar o planeta em 2100? Os modelos, quase que de forma unânime, indicam que o aumento da temperatura média na Terra será de, pelo menos, 1,5º C até lá. O fato de os termômetros  subirem é apenas um indicativo de como pode ser o século 21. A complexidade é muito maior.

Quarta ilustração

Por causa das várias pesquisas interdisciplinares em curso tanto no Brasil quanto no exterior, os cenários possíveis, a partir do contexto do aquecimento global, preveem vários impactos para a humanidade. Os eventos climáticos extremos, como as chuvas de verão em São Paulo ou as secas do Nordeste, podem ficar mais intensos. Se, no primeiro caso, políticas públicas precisam ser elaboradas, de forma urgente, para preparar a cidade, no segundo, soluções envolvendo possíveis ondas migratórias para outras partes do país também terão que ser consideradas.

Limites para o aquecimento

O consenso científico, apresentado por vários modelos matemáticos, mostram a Terra aquecendo até 2100. O que também vai gerar impactos naturais sobre a biodiversidade dos diferentes tipos de biomas. Por isso, o mais recente estudo lançado pelo IPCC mostra que é importante, nas próximas décadas, frear o aquecimento em 1,5º C. Caso os governos não consigam reduzir suas emissões, e a temperatura média, por exemplo, aumentar para 2º C em relação aos níveis do início do século, as transformações serão ainda mais significativas.

Em termos de aumento do nível do mar,  os dados mostram que a diferença de 0,5º C na atmosfera implica em uma subida, ou não, de 0,1m. É uma diferença significativa para a maioria da população da Terra que habita áreas litorâneas. O novo consenso apresentado pelos modelos mostra que as emissões precisam cair em 45% em relação aos números de 2010, até 2030, para a situação não começar a sair do controle. E, em seguida, até 2040, as emissões terão que ser zeradas.

Quinta ilistração

O físico brasileiro Paulo Artaxo, membro do IPCC, afirma que o problema atualmente não é científico, mas político. Principalmente em países como o Brasil e os Estados Unidos, onde as mudanças climáticas estão sendo colocadas fora das prioridades atuais.

 “Na ciência não há qualquer dúvida de que temos que reduzir emissões em cerca de 5% ao ano até 2040, quando as emissões de gases de efeito estufa deveriam ser zeradas. A partir de 2050, teremos que ter sequestro de carbono em larga escala para limitar o aumento de temperatura em 2 graus. Precisamos de políticas públicas para implementar esta estratégia”, afirma o pesquisador.

Muito das posições contrárias ao aquecimento global, no caso dos Estados Unidos e da administração do presidente Donald Trump, não tem a ver com descrédito aos conceitos científicos, afirma Artaxo. Segundo ele, o lobby da indústria do carvão e das empresas petrolíferas também são muito importantes no cenário atual.

Incertezas

Nem toda a ciência sobre os impactos da mudança climática é tão clara. Marcos Buckeridge, diretor do Instituto de Biociências da USP e também um dos pesquisadores brasileiros que participam dos estudos organizados pelo IPCC, diz que os efeitos da transformação do clima sobre a biodiversidade, e também sobre os seres humanos, ainda precisam ser melhor modelados. 

“A modelagem sobre o funcionamento de uma floresta ainda é muito simples. Se conhecem muito pouco as interações entre as plantas, ou mesmo em nível celular, em diferentes cenários de temperatura”. Neste caso, para que as simulações no computador fiquem mais fidedignas, a ciência no campo e nos laboratórios ainda precisa evoluir. Se a temperatura em uma floresta aumenta, e a quantidade de luz muda, como os processos de fotossíntese vão reagir? É uma das perguntas que os cientistas tentam responder.

Sexta ilustração

Mas o fato de o conhecimento precisar evoluir não significa que o fato fundamental das mudanças climáticas possa ser colocado em xeque. Muito pelo contrário. Durante a elaboração do relatório especial do IPCC lançado em 2018, que mostra que o mundo precisa segurar o aumento da temperatura em 1,5º C, a discussão científica foi acalorada. No total, 91 pesquisadores avaliaram 6 mil artigos científicos. Colaboraram com o texto mais de 130 cientistas. O grupo avaliou 42 mil comentários feitos pela comunidade em geral. “Houve uma interação gigantesca”, diz o cientista.

Mesmo em um quadro em que incertezas científicas existem, o sinal dado pelas pesquisas, de que a Terra está esquentando, é claro tanto para Buckeridge, quanto para Simões, o especialista em questões glaciais.

Gelo fino

No  que diz respeito aos ambientes gelados, as consequências do aquecimento sobre o Ártico, por exemplo, estão provocando mudanças muito mais rápidas do que na maior parte da Antártida. Mas isso também não significa que as áreas ao redor do Pólo Sul estão livres dos efeitos das mudanças climáticas.

Com o sinal positivo de aquecimento ligado para toda a Terra, outras questões científicas estão sobre a mesa de trabalho, segundo o IPCC. O problema não se resolve sabendo apenas como o clima e a biologia vão se comportar. Os cenários, agora, também precisam englobar outras questões bem complexas, como as dimensões humanas do aquecimento global.

É fato, segundo explica Buckeridge, que a economia, as ciências políticas, a sociologia e várias outras áreas do conhecimento precisam se entrelaçar cada vez mais na construção de cenários que tentem entender como será o mundo, nas próximas décadas, dentro do contexto das mudanças climáticas globais.

Afinal, os impactos e a necessidade de mitigação em uma megacidade como São Paulo ou Nova York, no interior do Nordeste ou da França e em regiões a beira mar são diferentes. Por isso mesmo, nos últimos meses, os próprios membros do IPCC começaram a discutir, em seus artigos científicos, como essa relação com as ciências humanas deve ocorrer.

Economia e sociedade

Os chamados caminhos socioeconômicos traçados pelos membros do IPCC tentam apontar os principais desdobramentos do aquecimento global em relação aos impactos esperados, às adaptações necessárias e às mitigações possíveis. Estas análises estão apresentadas em cinco narrativas, feitas a partir de diferentes tipos de desenvolvimento econômico e social.

O uso da terra e o consumo de energia, além de outros temas, vão variar bastante se a maioria dos países escolher o caminho do desenvolvimento sustentável pleno, ou o do uso intensivo dos combustíveis fósseis, mostram as análises do IPCC.

Sétima ilustração

Entre os dois extremos, existem mais complicações. Parte dos países, por exemplo, pode decidir seguir um caminho e a outra parte discordar. O debate sobre as mudanças climáticas, caso atual da política americana, pode ficar extremamente regional, o que deverá gerar novos conflitos. O crescimento da população e das economias também são variáveis importantes.

Do ponto de vista do desafio científico, segundo Buckeridge, o desequilíbrio causado pelo aquecimento global impõe um novo tipo de abordagem. “O potencial do aquecimento global no planeta equivale ao de uma grande guerra. Este novo estado de equilíbrio não é previsível com o pensamento linear. Cada vez mais as abordagens vão ter que ser sistêmicas”, afirma. Algo que a cibernética ou a própria biologia, dentro da Teoria Geral dos Sistemas, já conhece. A ciência avança com mais ciência.

Eduardo Geraque é repórter, com doutorado em jornalismo e meio ambiente pelo Prolam da USP

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