Um "ensaio clínico" contra a violência de gênero na Índia

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7 jul 2022
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Protesto Violência Índia

A pandemia de COVID-19 destacou para o público a importância da realização de testes bem desenhados na busca por remédios ou vacinas contra a doença. Padrão ouro nestas pesquisas são os chamados ensaios clínicos randomizados controlados (RCTs, na sigla em inglês), em que, na sua forma mais básica, o efeito de uma intervenção – que pode ser um medicamento, vacina ou outro tipo de tratamento – é comparado diretamente com o que acontece com um grupo de controle. Agora, um trio de pesquisadores pegou emprestada esta metodologia para avaliar o impacto de medidas para combater a violência de gênero na Índia.

O estudo, intitulado “Policing in patriarchy: An experimental evaluation of reforms to improve police responsiveness to women in India”, investiga como a criação de espaços dedicados ao atendimento de mulheres em delegacias pode ajudar a superar o preconceito e a cultura patriarcal nas forças de segurança, e elevar as taxas de registro e investigação de casos de violência doméstica e de gênero no país. Para tanto, os pesquisadores - Sandip Sukhtankar e Gabriele Kruks-Wisner, ambos da Universidade de Virgínia, EUA; e Akshay Mangla, da Universidade de Oxford, Reino Unido – usaram uma amostra de 180 delegacias a serviço de 23,4 milhões de pessoas em Madhya Pradesh, estado no centro-norte da Índia com 81 milhões de habitantes, no que classificaram como “o maior ensaio controlado randomizado de uma reforma na polícia até agora”.

Recentemente rotulada “o país mais perigoso no mundo para as mulheres”, devido às altas taxas de violência sexual, a Índia também é marcada pela forte desigualdade de gênero. Lá, as mulheres respondem por apenas 22,3% da força de trabalho, com o país ocupando a 140ª posição entre as 156 nações do Global Gender Gap Index. Situação que também contribui para altas taxas de violência doméstica, com estimativas apontando que quatro em cada dez indianas são vítimas de alguma agressão do tipo, ao longo de suas vidas. Apesar disso, relatório com dados das quatro maiores cidades de Madhya Pradesh indica que apenas 1% das mulheres que sofreram algum tipo de violência deram queixa na polícia.

Diante disso, o Departamento de Pesquisa e Treinamento da Polícia de Madhya Pradesh (MPP, na sigla em inglês), em conjunto com o trio de pesquisadores, advogados e especialistas em violência de gênero, desenvolveram a intervenção “Balcões de Ajuda para Mulheres” (Women’s Help Desks, ou WHDs, também na sigla em inglês), um espaço privado dentro de delegacias comuns em que as vítimas podem fazer suas denúncias a policiais treinados para atendê-las, numa operação padronizada e divulgada para as comunidades atendidas. A aposta dos especialistas é que este tipo de iniciativa dê melhores resultados do que a criação de delegacias exclusivas para o atendimento de mulheres, como as abertas Brasil afora, promovendo uma mudança de mentalidade em toda força policial.

“Estas delegacias apenas de mulheres, como outros espaços segregados por gênero, tais como vagões exclusivos para mulheres ou escolas para meninas, operam com base na teoria de que as mulheres podem se sentir mais confortáveis na ausência de homens”, explicam. “A premissa é de que as mulheres vítimas de crimes terão maior probabilidade de denunciar os casos em delegacias exclusivas, e que as policiais mulheres nestas delegacias serão menos constrangidas por uma cultura patriarcal nas polícias. Mas pesquisas recentes sugerem que separar os casos envolvendo mulheres de outros trabalhos policiais reduz a possibilidade de que policiais em delegacias normais registrem casos relacionados à violência de gênero, criando barreiras que reforçam a marginalização das mulheres”.

 

O experimento

Assim, os pesquisadores, em conjunto com a MPP, primeiro definiram a amostra do experimento. Para começar, foram selecionados 12 dos 51 distritos em que se divide o estado indiano, automaticamente incluindo os que abrigam as quatro maiores cidades de Madhya Pradesh e os demais apontados como representativos da geografia, demografia e condições socioeconômicas do todo. Foram excluídas delegacias especializadas (chefaturas, crimes de informática ou as já existentes delegacias de mulheres, por exemplo), bem como postos de polícia (menores do que uma delegacia). A MPP também excluiu da seleção delegacias em localidades remotas, que atendem apenas populações rurais, por não considerar que o tráfego nelas demande um balcão de atendimento permanentemente ativo.

Disto resultou uma amostra de 180 delegacias consideradas representativas do atendimento a uma população de 23,4 milhões de pessoas dos principais centros urbanos e parcialmente rurais de Madhya Pradesh, que então foram randomizadas (sorteadas) para os três “braços” do experimento: em 61 foram instalados Balcões de Ajuda a Mulheres; em 59, estes espaços não só foram criados como eram comandados por mulheres; e 60 que continuaram a funcionar normalmente, sem qualquer intervenção, servindo como grupo de controle.

No sistema policial indiano, as ocorrências são registradas na forma de um Relatório de Informação Inicial (First Information Report, ou FIR, na sigla em inglês), que guarda as informações de delitos “cognoscíveis”, classificados no Código Penal do país como infrações de natureza séria, com relação as quais o oficial de polícia tem autoridade para efetuar uma prisão sem mandato judicial, ou iniciar uma investigação sem permissão prévia de um tribunal. Desta forma, o FIR é a etapa inicial da investigação de um crime.

Casos de violência doméstica, no entanto, também podem ser registrados na forma de um Relatório de Incidente Doméstico (Domestic Incident Report, ou DIR, também na sigla em inglês). Mecanismo criado por lei aprovada em 2005, o DIR dá início a um processo civil, com acionamento dos serviços sociais, permite a emissão de medidas protetivas e de garantia de sustento econômico da vítima, e também pode levar a procedimentos criminais. Mas, diferentemente dos FIRs, que podem ser registrados diretamente nas delegacias, um DIR deve ser protocolado junto a um tribunal. Mas um policial pode ser designado oficial de proteção da vítima e apresentar o processo ao juiz.

Desta forma, os pesquisadores apontam que a hesitação da polícia em registrar casos de violência de gênero é movida em parte por uma grave limitação de recursos e capacidade, que estimula os policiais a reduzirem o número de casos a seu encargo, assim como por pressões políticas para baixar as taxas oficias de criminalidade. “Mas a cultura patriarcal da polícia também trabalha contra o registro dos casos: os policiais são encorajados mais a ‘proteger as famílias’ e promover a reconciliação do que a respeitar os direitos legais das mulheres, e muitas vezes culpam as vítimas de agressões sexuais, ou questionam a veracidade de suas denúncias”, acrescentam.

“Um relatório recente, por exemplo, revelou que 39% dos policiais acreditam que as denúncias de violência de gênero são infundadas. O mesmo relatório também destaca o patriarcalismo nas delegacias da Índia, com as mulheres representando apenas 7% das forças nacionais de segurança, enfrentando pesadas cargas de serviço e discriminação nos locais de trabalho. Policiais mulheres trabalhando nestes cenários altamente masculinizados podem muitas vezes se sentir pressionadas a agir como ‘um dos rapazes’, replicando as normas patriarcais”.

Definidas a amostra e as intervenções, teve então início o experimento. O treinamento dos policiais começou em julho de 2018, e a partir de maio de 2019 os balcões de atendimento começaram a ser instalados nas delegacias, considerado então o início do “tratamento”. As equipes de campo passaram a monitorar a implementação dos espaços em dezembro de 2019, quando os policiais de todas delegacias dos braços de “tratamento” já tinham recebido algum treinamento, 94% estabelecido os balcões de atendimento, 87% feito a divulgação às comunidades e 90% dos que seriam liderados por mulheres já haviam apontado uma policial encarregada. No geral, no entanto, apenas 67% tinham completado o treinamento dos oficiais, e a divulgação ainda era limitada, devido à enorme jurisdição que estas delegacias cobrem.

 

Resultados

Mas, mesmo com as limitações e dificuldades, os resultados do “ensaio clínico” foram animadores. Segundo os pesquisadores, a criação dos balcões levou a um aumento nos registros de queixas de mulheres. Primeiro no número de DIRs, que foram praticamente zero no grupo de controle – delegacias onde os policiais muitas vezes nem sabem que este tipo de registro de ocorrência existe –, mas alcançaram uma média de 1,5 caso mensal nas delegacias dos grupos de intervenção. Mais que isso, foi observado um grande aumento nas ocorrências de registro criminal na forma de FIRs nas delegacias dos braços de “tratamento”, de 14,1% em casos de crimes contra mulheres, e de 10,1% nos FIRs abertos por mulheres. Estes resultados refletem mais 1.905 DIRs e 3.360 FIRs registrados nos 11 meses que durou o experimento.

Separando a análise por grupos de “tratamento”, os pesquisadores destacam que tanto nas delegacias em que os balcões de atendimento foram comandados por homens quanto nas que foram comandados por mulheres o número de DIRs registrados subiu de maneira parecida, com coeficientes estatísticos indistinguíveis. O aumento nos registros criminais (FIRs), no entanto, foi impulsionado totalmente pelas delegacias com balcões comandados por mulheres: 26,4% em casos de crimes contra mulheres, e de 10,1% nos FIRs abertos por mulheres. Ainda de acordo com os pesquisadores, estes resultados foram influenciados por mudanças no comportamento dos policiais, refletindo uma maior probabilidade de os casos serem registrados uma vez que uma mulher apresente uma queixa, e não por alterações observáveis na procura pelos serviços da parte das mulheres.

“Nossos resultados sugerem que mesmo com recursos limitados em ambientes patriarcalistas, esforços para focar a atenção em casos envolvendo mulheres podem ter um impacto significativo no comportamento da polícia, tornando os policiais mais responsivos às preocupações das mulheres com sua segurança”, comentam os pesquisadores. “Isto é visível nas altas nos registros tanto de FIRs quanto de DIRs. O aumento nos DIR em ambos braços de tratamento é pronunciado, refletindo a adoção de uma prática relativamente recente que ainda é em grande parte desconhecida de policiais sem treinamento para atendimento nos Balcões de Ajuda para Mulheres, e desta forma é praticamente ausente na linha de base e nas delegacias do grupo controle”.

Os pesquisadores destacam que, nestes casos, os policiais devem ajudar as mulheres a fazer seu relato e também se assegurar que os relatórios sejam protocolados junto a uma magistratura local e que os serviços sociais (como abrigos) sejam acessados – atividades que vão além do trabalho policial convencional. Com o treinamento nos WHDs, os policiais ganham conhecimento dos DIRs e sobre como coordenar o trabalho com outras agências do Estado e da sociedade civil.

Já quanto aos FIRs, os pesquisadores avaliam que o fato de o aumento nos registros ter sido observado primariamente nas delegacias que tinham balcões comandados por mulheres é uma indicação de que a presença de mais policiais femininas nas delegacias faz diferença na hora de superar as barreiras para que as ocorrências sejam registradas. Segundo eles, essa diferença de efeito da intervenção com base no gênero da policial encarregada para FIRs e não para DIRs reflete o maior trabalho que o registro criminal implica para as autoridades policiais, requerendo investimento tanto de tempo para investigação quanto para os procedimentos judiciais.

“Mas, mais que isso, para registrar um FIR os policiais devem lutar contra normas fortes dentro das polícias – articuladas por nossa pesquisa qualitativa – que priorizam ‘proteger as famílias’ evitando procedimentos legais, além de narrativas desdenhosas sobre ‘queixas falsas’”, destacam. “Os DIR, embora certamente não triviais, dão menos trabalho para os policiais, em parte porque originam casos cíveis, e não criminais, e em outra parte porque divide o fardo do trabalho com outras agências governamentais. E é também uma prática relativamente recente, contra a qual não há tantas resistências estabelecidas pelas normas patriarcais. Em suma, registrar um FIR requer um maior nível de compromisso do policial, o que vemos primariamente em WHDs liderados por mulheres”.

Diante destes resultados, os pesquisadores consideram que a criação de espaços especiais para atendimento de mulheres em delegacias comuns pode ter um efeito mais benéfico na luta contra a violência de gênero do que a abertura de delegacias especializadas ao aumentar a atenção de consciência de toda a força policial para este tipo de questão. De fato, contam, o sucesso foi tamanho que a MPP decidiu ampliar a escala da intervenção, levando os balcões para 700 delegacias em todo estado indiano de Madhya Pradesh.

 

Cesar Baima é jornalista e editor assistente da Revista Questão de Ciência

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