Para conter a pandemia, igrejas também precisam fechar

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10 mar 2021
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parede de crânios

O SARS-CoV-2, vírus causador da COVID-19, é um microrganismo com transmissão que se dá primordialmente por aerossol. Há alguma transmissão aérea, mas bastante limitada. Isso significa que o contágio ocorre com muito mais eficiência quando há pessoas próximas umas das outras, dentro do raio de alcance das gotículas de saliva e muco que emitimos ao falar e respirar, e em ambientes fechados, onde ou não há vento para dispersar as tais gotículas ou onde as correntes de ar, geradas por ventiladores ou aparelhos de ar-condicionado, apenas jogam essa saliva de um lado para o outro.

Locais que têm características que favorecem um vírus desse tipo são restaurantes, salas de espetáculo (incluindo cinemas), salões de festa, bares, arenas esportivas, salas de espera de diversos tipos de profissional, salas de aula, escritórios – e igrejas. Não há nada especial em locais de culto que os tornem mais ou menos condutivos ao contágio do que outros espaços com características semelhantes. Por isso, igrejas também precisam fechar.

Não se nega que a congregação humana em atividades religiosas presta serviços psicológicos importantes para parte da população. Mas cinema, teatro, esportes, museus, bares e refeições compartilhadas também oferecem ajuda e consolo para muita gente. O fato é que a pandemia requer que nos privemos de certos confortos agora para poder desfrutar deles com tranquilidade no futuro.

E quanto à fé? Ela não protege? Teologicamente, talvez uma das lições menos apreciadas do Novo Testamento seja a recusa de Jesus em se jogar do alto do Templo de Jerusalém, mesmo sabendo que anjos iriam apará-lo antes que tocasse o chão: “Também está escrito, não testarás o Senhor teu Deus” (Mateus, 4:7). Em termos seculares, históricos, a hipótese de proteção especial para templos religiosos carece de qualquer apoio.

Durante a pandemia atual, um dos picos de contaminação na Coreia do Sul foi causado exatamente por um templo evangélico. Não só: o hábito medieval de construir igrejas, para tentar barrar o avanço dos vários surtos de peste bubônica que assolaram a Europa no período, não parece ter dado resultado. A “Encyclopedia of the Black Death” anota que “na Inglaterra, as ‘igrejas da praga’ frequentemente encontram-se abandonadas, seus vilarejos tendo sido despovoados pela doença”.

O uso de máscaras e a imposição de restrições à atividade econômica, à aglomeração e à circulação de pessoas a fim de conter uma epidemia de vírus respiratório não são invenções novas, e os efeitos trágicos da negligência quanto a essas medidas, ou de seu relaxamento irresponsável, são bem conhecidos. Em seu livro “Viruses, Plagues & History”, o imunologista Michael Oldstone escreve que “a disseminação da gripe talvez seja melhor ilustrada por um estudo realizado em San Francisco”.

Em outubro de 1919, um mês depois do primeiro caso de gripe espanhola registrado na cidade naquele ano, 75% das enfermeiras de San Francisco estavam doentes e os hospitais estavam todos lotados com pacientes de gripe. Escolas e casas de espetáculo foram fechadas, e o uso de máscaras tornou-se obrigatório, sob pena de multa ou mesmo cadeia. Em 21 de novembro, com as autoridades considerando a crise controlada, a obrigatoriedade foi revogada – e em dezembro houve 5 mil mortes.

Oldstone também compara o desempenho das cidades americanas de Filadélfia e St. Louis durante a gripe de 1918. “Fliadélfia permitiu aglomerações públicas, escolas abertas, igrejas, reuniões, etc. De fato, as autoridades realizaram um grande desfile para promover a venda de bônus para a I Guerra Mundial”. Quatro meses depois, “mais de 12 mil filadelfianos tinham morrido da infecção”.

Já St. Louis fez um esquema de rastreamento de contágios e quarentena de doentes, e fechou “escolas, igrejas, teatros e locais de aglomeração”. Como resultado, teve apenas metade do total de casos da Filadélfia. “No entanto, três dias depois do armistício que pôs fim à I Guerra Mundial, a cidade reabriu escolas, empresas e permitiu reuniões públicas. Duas semanas depois, uma segunda onda de gripe, devastadora, atingiu St. Louis”.

A taxa de mortalidade da gripe espanhola em Filadélfia, só nos primeiros seis meses da pandemia, ficou em 748 por 100 mil habitantes. Em St. Louis, foi de 358 por 100 mil. A gripe espanhola matou pelo menos 20 milhões de pessoas – há estimativas que falam em mais de 50 milhões – ao longo de três anos (de 1917 a 1919) e, segundo a “Encyclopedia of Plague and Pestilence”, ombreia com a Peste de Justiniano (a partir de 542) e a Peste Negra (a partir de 1347), ambas na Idade Média, como uma das epidemias mais letais de todos os tempos.

Com 2,6 milhões de mortes registradas até agora, após um ano circulando pelo mundo, a COVID-19 está longe do recorde das grandes pragas do passado, mas já merece um lugar entre as 15 epidemias mais letais da história. Orações não deveriam ajudá-la a subir nesse ranking.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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