O falso heroísmo dos "rebeldes" da pandemia

Artigo
10 mar 2021
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Steve Reeves

Deixe-me tirar, já de cara, o espantalho do caminho. Quem não tem a escolha de trabalhar em casa, e não tem reservas para usar, teve que trabalhar e pronto. Desde que se previnam das formas disponíveis, essas pessoas estão correndo o menor risco possível, protegem a própria vida e a da família. Ponto final. Não há nada a ser dito: quem não tem escolha, não escolhe.

Agora, há aqueles que, trabalhando fora de casa ou não, têm também ido fazer compras em shoppings, tomado uma cervejinha no bar, curtido uma pista de dança, viajado de avião para fazer turismo, visitado amigos, parentes, etc. Eles têm se intitulado “os corajosos”, “os que enfrentam”. Alguns falam até em “disposição para o sacrifício”. Pois é, sempre achei que coragem e sacrifício estavam ligados a colocar sua vida ou bem-estar em risco concreto, para atingir algum objetivo mais nobre, principalmente o de proteger a vida dos outros.

Vamos, então, dar uma olhada neste enfrentamento considerando estes três fatores: (I) o risco para o “enfrentador”, (II) o risco para os outros e (III) a causa nobre.

(I) Risco para “o herói”: os números variam bastante com a idade e com fatores de saúde (doenças, obesidade, etc), e não vou montar uma tabela enorme aqui. Mas todo mundo sabe que, se você é jovem (menos de 50 anos) e razoavelmente saudável, a chance de ir parar na UTI por conta da COVID-19 não é mesmo das maiores. Este site, baseado neste estudo, calcula que o quarentão aqui tem uma chance de 2,5% de ser hospitalizado, mesmo depois de eu incluir falta de ar e febre na conta (ou seja, assumindo que já estivesse com sintomas medianos de COVID-19; a maioria das pessoas nem chega nisso). 

Então, acho que se eu saísse pela rua disposto a pegar COVID-19, não estaria realmente sendo muito corajoso não, sabendo que a chance de “não dar ruim” para mim seria de 97,5%. Mesmo quem é bem mais velho, ainda tem uma chance de mais de 90% de evitar o hospital (aumentei a minha idade na simulação para 82 e deu 94% de sair livre). Não coloco a mão no fogo pela precisão dos números acima, mas a ordem de grandeza é mais ou menos essa mesmo. Pegar COVID-19 não é sentença de morte, nem perto disso, e você não está sendo muito corajoso se estiver “por aí, fazendo o que quiser”.

(II) Risco para “os outros”: rigorosamente é o mesmo risco que para você, certo? Errado! Você é um, os outros são muitos (muitos mesmo, temos uns 7 bilhões de outros por aí). Cada pessoa que pegar o vírus que você vai transmitir tem pouca chance de ficar mal, mas como muitas vão pegar, tem alguém que vai sofrer. Deixe-me fazer aqui uma continha errada, mas que está errada PARA BAIXO (ou seja, vou calcular um número de infectados que certamente está bem abaixo do real).

Suponha que cada herói do enfrentamento que pegue COVID-19 transmita a doença para 1,05 pessoas em média (ou seja, cada 100 “heróis” contaminam 105 pessoas, o que é bem menos do que tem acontecido no mundo real). Vamos assumir que cada geração de contaminados ocorre 7 dias depois da anterior (de novo, estou suavizando, o número real é mais perto de cinco). Imagine que alguém tenha, heroicamente, viajado para um resort em julho/2020, vinte e oito semanas atrás.

Uma conta simples (igual ao cálculo de juros compostos) mostra que hoje já existiriam 61 pessoas (em média) que pegaram o vírus que nasceu naquele turista (ou os descendentes daquele vírus, é toda uma dinastia). Assumindo uma taxa de fatalidade de 2,5%, uma ou duas destas pessoas morreram (em média 1,5 morte para cada herói). Se eu deixar a conta um pouco mais realista e trouxer a taxa de transmissão para 1,1 e o período entre gerações para 5 dias, passam a ser 440 infectados e 11 mortos por “herói”.

Ou seja, seu “heroísmo”, com chance quase zero de te matar, tem, dali a alguns meses, uma chance próxima a 100% de matar pelo menos uma pessoa, e possivelmente algumas pessoas. Vale a pena ressaltar: muitas destas pessoas que pegaram o vírus que você botou no mundo não estavam na rua se fazendo de heróis, mas sim obrigadas a trabalhar por condições além de seu controle.

(III) Causas Nobres: resta saber por que diabos alguém se disporia a ser o originador de toda uma linhagem de vírus que acaba matando gente por aí. E a verdade é que tem coisas que justificam sim, por exemplo: se você for um médico ou enfermeiro salvando vidas ao trabalhar (mas este é muito óbvio e não justifica os médicos tomando uma cervejinha no bar).

Há também situações mais sutis: o seu trabalho é “presencial” e pode ser essencial para os outros (quem produz comida, ou energia, digamos). Outro exemplo, que é uma discussão importante acontecendo agora, é o das escolas. Em minha opinião, seria aceitável pará-las por períodos curtos, mas no longo prazo são importantes o suficiente para este risco ser aceitável (mas entendo quem discorda). 

O que não é uma boa causa? Vou dar uns exemplos: “eu não aguento ficar sem ver minha tia / primo / irmão / cachorro / amigo / crush / etc.”, “preciso ir para a balada hoje” ou “não fico sem praia”.

Enfim, diversas formas de lazer que envolvem ficar em contato com um número grande de pessoas. Se você está arriscando a vida dos outros, é melhor ter desculpas mais fortes. Há quem diga que está “salvando os negócios”, que se não estivesse consumindo tudo iria falir. Quer dizer que não dá para pedir comida? Isso gera contato com um entregador, por segundos, ao invés de, potencialmente, um monte de contatos dentro e em volta de um restaurante.

Não dá para comprar quase qualquer coisa online? No limite, se você é tão heroico, doe o dinheiro para aquele hotel que você pretendia visitar. Nem precisa ser o mesmo dinheiro que você ia gastar lá, porque o custo que você gerou para ele ficando em casa foi zero. Parece absurdo, não é? Mas conheço gente que continuou pagando a escola que os filhos não frequentaram (nem virtualmente), pagando a empregada que não veio por meses e a academia que não frequentou, justamente para ajudar pessoas e negócios que passariam por problemas. Mas esses são os covardes, de quem falarei mais adiante.

Só resumindo: os heróis do enfrentamento ao COVID-19, os machões, aqueles que levaram vida normal, não usam máscara, passeiam e se divertem: (1) correram risco praticamente zero de morrer, (2) quase com certeza causaram mortes de outros e (3) como “causa nobre” têm apenas a vontade de fazer aquilo que já fariam de qualquer forma. Não estão sacrificando nada. E, se não acreditam na realidade da pandemia, então em suas cabeças não estão arriscando nada.

Enquanto isso, há os covardes. Pessoas que estão POR VONTADE PRÓPRIA fechadas em casa, privando-se do Sol, da companhia das pessoas que amam e, muito provavelmente, sofrendo prejuízos financeiros, uma vez que a produtividade raramente é a mesma sem um contato direto com equipes e colegas de trabalho (sem falar naqueles que estão tendo que triplicar o tempo como profissionais, professores e pais, tudo em tempo integral). ENFRENTANDO riscos enormes e reais, de ficar deprimido, falido ou maluco. 

Tudo isso não é para se proteger, uma vez que o risco para o indivíduo não é grande, mas para tentar conter uma onda que já matou 260.000 brasileiros e teria matado muitos mais, não fosse a ação frouxa destes bundas-moles. As melhores estimativas que temos dizem que estes covardes terão salvado algumas centenas de milhares de vidas até o fim da pandemia. É realmente um pessoal desprezível.

Estamos em uma época de corajosos que não superaram medo algum, heróis egoístas e covardes que salvam vidas.

 

Ricardo D’Elia Matheus é físico, com doutorado pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor e vice-diretor do Instituto de Física Teórica da UNESP, membro do conselho curador da Fundação Instituto de Física Teórica, desenvolve pesquisa na área de física de partículas e participa de projetos de formação de jovens cientistas e de divulgação científica

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