Passos para comunidades marginalizadas confiarem nas vacinas

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25 fev 2021
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Mais de 500 mil americanos morreram de COVID-19 até agora, um número devastador que ainda vai aumentar. A aprovação de vacinas altamente eficientes, como as da Pfizer-BioNTech e da Moderna, pela Food and Drug Administration (FDA), deu esperança de que a pandemia possa ter um fim. Embora o início da vacinação tenha sido tumultuado, especialistas estão otimistas e acreditam que mais de 100 milhões de pessoas estarão imunizadas ainda neste primeiro semestre.

Todas as evidências até agora indicam que as vacinas são seguras e, a despeito das pressões da Casa Branca durante a gestão Trump, todas as etapas do desenvolvimento de uma vacina foram cumpridas à risca. Diferentemente de algumas vacinas convencionais, as da Pfizer e da Moderna não contêm vírus vivos e, portanto, não podem transmitir ou causar COVID-19 inadvertidamente. As duas usam RNA mensageiro (RNAm) para fazer com que organismo sintetize uma única proteína viral, que faz com que ele desenvolva anticorpos contra o vírus. Como o RNA mensageiro não entra no núcleo da célula, ele não afeta o DNA. 

Mesmo assim, uma considerável parcela do público ainda hesita em tomar a vacina, com a distribuição revelando profundas desigualdades de acesso raciais e étnicas. De acordo com uma pesquisa do Pew Research Center, realizada em novembro, apenas 60% dos americanos estavam dispostos a ser vacinados, um índice que caía para 42% entre afro-americanos [1].

A triste ironia é que as comunidades negras têm muito a ganhar com a vacinação. Afro-americanos, hispânicos e americanos nativos (indígenas) estão sucumbindo à COVID-19 em taxas desproporcionalmente altas, mortes que precisam ser compreendidas dentro de um quadro de racismo estrutural e desigualdades históricas no acesso à saúde. Para as comunidades negras, o preço da hesitação pode ser especialmente alto.

Há feridas profundas sob o ceticismo de muitos negros americanos. Todos nós lembramos vivamente do “experimento” com sífilis em Tuskegee, a coleta das células cancerosas de Henrietta Lacks e as experiências ginecológicas desumanas de J. Marion Sims [2]. Sentimos na pele a discriminação racial na prática médica até hoje, mas essas injustiças não podem embaçar nosso julgamento sobre as vacinas contra a COVID-19.

Como enfermeiras negras com uma prática somada de mais de 70 anos, acreditamos que profissionais da saúde – especialmente os que pertencem a minorias – têm um papel fundamental na divulgação de informações, na promoção da confiança e na facilitação da tomada de decisão sobre a vacina nas comunidades negras e latinas. Mas é preciso ter um plano, um que traga narrativas claras sobre as vacinas e que envolva membros respeitados nessas comunidades, preparados para fornecer informações factuais sem que sejam coercitivas ou paternalistas. Se os profissionais de saúde realmente quiserem reconciliar-se, reconectar-se e restabelecer confiança com as comunidades, os seguintes princípios são fundamentais.

Em primeiro lugar, profissionais da saúde precisam afiar sua mensagem. Precisamos nos educar sobre as vacinas. Precisamos ser capazes de explicar aos pacientes como foram desenvolvidas, como foram testadas e como funcionam. Precisamos fazer uma comunicação clara, sem jargões médicos desnecessários. Depois de compartilhar informações vitais com pacientes, devemos pedir que repitam o que ouviram. Precisamos ser capazes de nos comunicar de forma eficiente com pessoas que não falam inglês. E devemos estar preparados para sustentar essas conversas, porque a construção da confiança leva tempo. Ações como a Carta de Amor para a América Negra, recentemente escrita por um grupo de médicos e enfermeiros negros, que integram a Coalizão Negra contra a COVID-19, podem ser um ponto de partida.

Em segundo lugar, instituições de saúde precisam trabalhar com as comunidades para desenvolver e transmitir informações por diferentes meios de comunicação e mídias sociais, para alcançar diferentes gerações. As mídias sociais são apenas um dos meios para enfrentar informações imprecisas, falsas ou conflitantes que circulam entre o público. Autoridades de saúde também devem fornecer recursos e apoio para organizações comunitárias confiáveis. Um modelo em potencial é o da Accountable Communities for Health (ACH), que tem como objetivo criar parcerias entre líderes comunitários e instituições de saúde para não apenas fornecer serviços de saúde, mas também lidar com questões sociais determinantes para a saúde, como moradia e segurança alimentar. Há mais de cem ACHs hoje nos Estados Unidos, mas seu modelo talvez não trate adequadamente de como os motores estruturais da desigualdade, como o racismo, alimentam a desconfiança das comunidades.

Em terceiro lugar, serviços de saúde precisam reconhecer o papel único que pastores e outros líderes religiosos desempenham nas comunidades negras. De acordo com o Pew Research Center, 75% dos negros americanos afirmam que a religião é muito importante para eles, comparados a 50% dos americanos brancos. Profissionais de saúde, especialmente os negros, deveriam firmar parcerias com esses líderes religiosos para fornecer informações corretas sobre as vacinas contra a COVID-19 e ajudá-los a traduzir o jargão médico para seus paroquianos.

Estamos vendo isso acontecer. No norte do Texas, o pastor de uma igreja predominantemente negra convidou Kizzmekia Corbett – que é negra e liderou os esforços dos National Institutes of Health (NIH) quanto às vacinas contra a COVID-19 – para compartilhar informações com os paroquianos. De acordo com o pastor, a conversa deixou muitos paroquianos mais seguros quanto às vacinas e as informações que receberam.

Por último, gestores de saúde precisam ter em mente que a vacinação pode ser uma tarefa complicada em termos de logística, especialmente nas comunidades negras e latinas, em que o acesso à saúde é limitado. Para facilitar a entrega e a administração de dezenas de milhões de vacinas, é importante forjar novas relações entre os departamentos de saúde locais e programas de educação de profissionais de saúde, como faculdades de enfermagem. No Illinois, departamentos de saúde do estado, dos condados e das cidades firmaram parcerias com faculdades de medicina, enfermagem e farmácia para ajudar na vacinação e no acompanhamento das pessoas no pós-vacina. O estado também aprovou legislação permitindo que técnicos da emergência também vacinem a população. Outros estados americanos também estão convocando estudantes dessas áreas para administrar vacinas.

Além disso, alguns estados estão permitindo dentistas, farmacêuticos e técnicos de farmácia a vacinar a população. Para facilitar o acesso, Illinois pretende oferecer serviço de drive-thru em espaços abertos em faculdades e locais de reunião de comunidades pequenas. Essa abordagem pode ser vital para atingir pessoas de comunidades marginalizadas com pouco acesso a serviços de saúde.

Mas de 60 mil negros morreram de COVID-19. Eles têm chance 1,4 vez maior de pegar a doença do que os brancos, 3,7 vezes mais chances de precisar ser hospitalizados e 2,8 mais chances de morrer de COVID-19. É compreensível que muitos negros e hispânicos americanos desconfiem do súbito interesse dos profissionais de saúde em seu bem-estar.

Mas o flagelo da desigualdade não começou com a COVID-19 e nem vai terminar quando a pandemia acabar. Injustiças como o tratamento dado à Dra. Susan Moore, que morreu de COVID-19 depois que um médico de um hospital em Indiana minimizou suas queixas de dor no peito e dificuldade para respirar e a mandou para casa, são emblemáticas do racismo sistêmico profundamente enraizado na saúde, e que precisa ser combatido com todas as armas disponíveis

No longo prazo, enfrentar o racismo e as políticas econômicas que contribuem para as disparidades do acesso à saúde pode encurtar a distância entre comunidades e provedores de serviços de saúde. Mais igualdade racial na atenção à saúde também pode ajudar a melhorar os resultados dos tratamentos dispensados aos pacientes. Estudos mostram que pacientes negros e hispânicos tendem a responder mais positivamente a profissionais de saúde que se parecem com eles e com quem compartilham valores culturais e experiências de vida.

No curto prazo, legisladores, profissionais de saúde e membros de comunidades precisam fazer o máximo possível para conter uma pandemia que está matando centenas de negros e latinos diariamente. Precisamos pressionar por maior acesso à saúde e reduzir as desigualdades de tratamento enquanto combatemos o medo da vacina com ciência, e a desconfiança com conhecimento.

 

Dra. Wrenetha Julion é professora e chefe de departamento na Rush University College of Nursing e Public Voices Fellow no OpEd Project.

Dra. Kenya Beard é reitora para Social Mission and Academic Excellence da Chamberlain University e presidente do Academy of Nursing’s Diversity & Inclusivity Committee.

Artigo publicado originalmente em Undark

 

undark

Notas

1. Pesquisas mais recentes mostram uma adesão crescente da população negra às vacinas contra a Covid, algumas indicando que mais de 70% dessa população pretendem se vacinar. 

2. Considerado “pai da ginecologia moderna”, Sims desenvolveu uma cirurgia para reparo da fístula vesicovaginal, causada por partos muitos longos. Seus experimentos foram feitos em escravas negras sem anestesia.

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