Mentiras sobre máscaras

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10 fev 2021
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Máscaras usadas para conter a disseminação da COVID-19 não acidificam o sangue e nem causam doenças. O serviço de checagem de boatos Aos Fatos emitiu, há poucos dias, um alerta sobre postagem que vem circulando pelas redes sociais alegando que as coberturas faciais prendem um excesso de CO2 junto ao rosto e isso teria o tal efeito de acidificação, e que acidificação leva ao câncer.

Tudo bobagem. A mentira de que as máscaras acumulam CO2 junto à face já havia sido exposta diversas vezes, antes – por exemplo, neste artigo da Agência France Presse, de maio do ano passado – e um bom jeito de entender porquê essa alegação não faz sentido é comparar o tamanho daquilo que as máscaras devem segurar ao da molécula de dióxido de carbono.

No caso das máscaras comuns de pano, o que se espera é que consigam deter gotículas de saliva que tragam o vírus a bordo. Essas gotas têm diâmetro, no mínimo, da ordem de 1 micrômero – isso é, 1 milésimo de milímetro. Já a molécula de CO2 tem diâmetro de 0,33 nanômetro – milionésimo de milímetro. Resumindo, o perdigoto que a máscara segura é por volta de 10 mil vezes maior do que a molécula de CO2. Achar que algo feito para segurar perdigotos vai segurar CO2 é como achar que as grades de um portão de condomínio evitam ácaros.

O mais interessante da versão da mentira que o Aos Fatos pegou agora – ao menos para quem se interessa, como eu, pelo folclore das pseudociências – é a suposta cadeia de causa e efeito sugerida pelo boato: a máscara leva ao CO2, que leva à acidificação sanguínea, que leva ao câncer. Esse tropo, o do “sangue ácido”, frequenta mitologias que vão do marketing picareta da “água alcalina”, das dietas “alcalinas” e chega a teorias de conspiração envolvendo Adolf Hitler.

O pessoal que vende água ou dieta alcalina diz, entre outras coisas, que a dieta contemporânea, com seus excessos de gordura e açúcar, tende a tornar o sangue humano “mais ácido”, e que a água alcalina ajudaria a corrigir isso; ou que a água alcalina teria propriedades “antioxidantes”, comparáveis às de certas vitaminas.

É verdade que uma dieta enriquecida de gorduras e carboidratos gera dióxido de carbono, que tem um efeito acidificante. Mas o corpo humano conta com poderosos mecanismos regulatórios, envolvendo principalmente a respiração e a função renal, para impedir que eventuais desequilíbrios afetem o pH do sangue, que é mantido, rigidamente, num nível um pouco alcalino, por volta de 7,4. Qualquer grande variação representa um problema grave de saúde.

O envenenamento por metanol deixa o sangue ácido, bem como uma condição vinculada à diabete chamada cetoacidose, mas tanto a cetoacidose quanto o envenenamento são situações agudas e potencialmente letais, com tratamento hospitalar; certamente não são provocados pelo uso de máscaras e nem representam “desequilíbrios” crônicos que se corrigem com um copo de água, um suco detox ou uma salada gourmet.

E onde o câncer entra nessa história? O que ele tem a ver com acidez? A falsa relação entre “sangue ácido” e “câncer” nasce de uma distorção da Hipótese Warburg, elaborada pelo médico alemão Otto Warburg (1883-1970), que viria a ganhar o Nobel de sua área em 1931. Warburg havia descoberto que tumores em animais tendem a produzir ácido. Isso acontece porque algumas células cancerosas param de respirar para obter energia, e em vez disso começam a fermentar açúcar – processo que tem, como resíduo, um ácido.

O médico imaginou que era a falha na respiração celular que provocava o câncer. Hoje, sabemos que ele estava errado: essa falha é uma consequência, não uma causa, do crescimento no tumor.

Por razões comerciais (venda de suplementos, dietas, produtos “alcalinizantes”) ou ideológicas (crença em curas “naturais”, desconfiança dos médicos ou das farmacêuticas), no entanto, diversos grupos seguiram e seguem aferrados à hipótese descartada, com um detalhe extra: a alegação falsa de que, mais do que a falha da respiração, é a acidez que leva ao câncer. No Brasil, uma versão mal-ajambrada da Hipótese Warburg foi mobilizada como suposto “mecanismo de ação” da malfadada “fosfoetanolamina sintética”.

E onde entra Adolf Hitler nisso tudo? Como Warburg era alemão e esteve ativo nas décadas de 30 e 40, teorias da conspiração ligam a suposta “supressão” de sua descoberta da “verdadeira causa” do câncer a algum tipo de complô nazista.

Como se vê, até mesmo boatos maliciosos surgidos no contexto da pandemia atual têm suas árvores genealógicas, enraizadas em distorções de décadas – quando não, de séculos. Em ciência, não existe mentira inocente.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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