Vacinas são o medicamento mais seguro que temos. Faça sua aposta

Artigo
21 dez 2020
DADOS

 

No final dos anos 1650, o polímata e renomado cientista francês Blaise Pascal, que tinha passado por uma experiência religiosa que o transformou numa espécie de fanático, sugeriu a seguinte estratégia lógica a respeito da crença em Deus: se Deus existe, então acreditar nele garante a você uma felicidade eterna, ao passo que não acreditar pode lhe valer uma condenação eterna ao tormento. Por outro lado, se Deus não existe, não custa nada acreditar nele; e não acreditar não importa, já que não existe vida após a morte. Assim, a única aposta razoável é acreditar em Deus. Isso passou a ser conhecido como “aposta de Pascal”.

Ela tem um número surpreendente de aplicações, para além de uma confortável existência após a morte. Há muitas situações em que acreditar ou não em algo pode ser visto como uma aposta "custo vs. provável benefício", geralmente sem que importe se a crença corresponde à verdade ou não. Como a ciência não afirma ser detentora de uma verdade definitiva e, em algumas áreas, reconhece dispor apenas de conhecimento incompleto, a aposta de Pascal pode ser um método útil para decidir entre certas alternativas.

Por exemplo, parece que uma parcela significativa suspeita da ciência – ou pelo menos é o que se diz. Ouvimos constantemente que um grande número de americanos, por volta de 50% deles, não acredita na evolução. É algo notável, diante do fato de não haver uma oposição científica à evolução e ela ser largamente reconhecida por biólogos e outros cientistas da área como fundamental para entender a biologia – da genética à medicina. O que não contam para nós é que a maioria dos que negam a evolução entende a evolução – ou pelo menos o básico da teoria. Eles não são ignorantes, burros ou desinformados. Simplesmente fizeram uma aposta de Pascal.

Poderíamos nos perguntar que vantagem existe em acreditar na evolução, e não na criação divina. A não ser que você seja um biólogo profissional, isso não afeta o seu dia a dia. Por outro lado, acreditar na evolução darwiniana e descartar a narrativa bíblica provavelmente vai afastar você de sua família, seus amigos, colegas de trabalho, da comunidade de sua igreja – ou seja, da maior parte de sua infraestrutura social. Faça suas apostas.

Podemos aplicar esse método às decisões sobre vacinação e particularmente sobre as novas vacinas contra a COVID-19? 

Certamente há motivos para preocupação em tomar vacina, e seria uma simplificação grosseira considerar qualquer pessoa reticente em tomar vacina, essas vacinas novas em especial, como idiota, analfabeto científico, ingênuo ou fácil de enganar. Uma pessoa pode não ser nada disso, e ainda assim suspeitar das vacinas. 

Uma questão é a segurança. Uma vacina, qualquer vacina, é feita para mobilizar o seu sistema imune, basicamente fazendo com que ele acredite que existe um vírus invasor e monte uma defesa. Dessa forma, ele estará pronto para uma invasão real, se ela ocorrer. Isso parece lógico e bem melhor do que ir para a guerra contra um inimigo sobre o qual não se sabe nada. Mas, de qualquer forma, trata-se de enganar a Mãe Natureza, e muita gente não se sente confortável com isso. Vale lembrar que o vírus não tem o menor pudor em enganar o seu sistema imune e várias outras partes do corpo, então deixá-lo livre, leve e solto também não é um bom negócio.

E uma vacina feita de genes? São as vacinas produzidas por um método novo usando genes de RNA. Embora seja verdade, em termos econômicos, que estas são as primeiras vacinas produzidas por esse método, ele não é exatamente uma novidade, e a ciência que torna isso possível já está por aí há 40 anos. Então não é algo radical, como a imprensa vem falando.   

Mas é verdade que esse método usa RNA, material genético, para fazer vacinas. E a gente ouve muita coisa sobre modificação de genes e possíveis perigos associados a ela. Então, por que eu permitiria que genes de RNA sejam injetados em mim? A primeira coisa é entender que é exatamente isso que o vírus faz – então se você toma vacina ou pega COVID-19, você tem genes injetados em você. O RNA do vírus codifica cerca de 12 genes funcionais (seres humanos e outros mamíferos têm cerca de 25 mil). Os vírus têm apenas genes para produzir novos vírus – ele não tem nenhuma das capacidades de uma célula normal, de acionar esses genes para fazer todas as proteínas que compõem o vírus completo. Ele sequestra as suas células para fazer isso – e é assim que você fica doente, forçando suas células a fabricar novos vírus, em vez de fazer o que deviam estar fazendo.

As novas vacinas pegaram um só desses genes – aquele que comanda a produção da já famosa espícula que aparece na superfície do vírus – e injeta esse gene nas células dos seus músculos, que então vão fabricar essa única proteína. Seu sistema imune detecta aquela proteína esquisita e produz anticorpos contra ela. Esses mesmos anticorpos agora vão reconhecer a proteína da espícula na superfície de qualquer partícula viral que invada seu corpo. Assim, tornamos o vírus em seu próprio inimigo.

O RNA viral que você recebe na vacina vai se decompor em poucos dias porque o RNA não é uma molécula estável (e é por isso que as vacinas de RNA precisam ser mantidas em congelamento) e vai desaparecer do seu corpo. Ela só se tornaria parte permanente do seu genoma se fosse uma molécula de DNA em vez de RNA – e as chances de isso acontecer são quimicamente remotas. Então, ao contrário do que possa parecer, este pode ser o tipo mais seguro de vacina que podemos ter. É possível que, no futuro, todas as vacinas sejam feitas desse jeito.

Claro, tem a questão de quem está comandando o programa de vacinação nos Estados Unidos – o governo e a indústria farmacêutica. Os mesmos caras que produziram a dependência de opioides, a morte por causa do uso de Vioxx, a escalada de preços dos remédios, o pior sistema de saúde entre os países desenvolvidos, regulamentações que não são necessárias e ausência delas onde são necessárias – eu vou mesmo confiar nesse bando de “vilões ineptos”, como alguns acreditam, e permitir que eles ditem minhas escolhas pessoais na saúde?

Sabemos com certeza que as alegações deles de que a eficácia das vacinas é real, que não são apenas invenções para vender um procedimento que não serve para nada? Não seria a primeira vez. (Eu não me preocuparia, porém, com Bill Gates inserindo um chip em você com a vacina – se você usa alguma rede social, navega na internet e faz compras online, Bill Gates já sabe mais sobre você do que poderia saber com um chip injetável. Então, esqueça)

Tudo isso, e algumas outras questões, merecem uma pausa para reflexão. Mas também precisamos olhar o lado positivo da história. Por que confiar na ciência? A medicina moderna e a ciência por trás dela ou eliminou ou reduziu dramaticamente pragas como varíola, pólio, cólera, sarampo, catapora e uma série de outras doenças que costumava ceifar a vida de grande número de pessoas, às vezes partes significativas de gerações inteiras. Não é verdade que dependemos da ciência para boa parte do conforto e segurança da nossa vida diária? Não é da ciência que vêm as formas de aquecer ou refrescar nossas casas, de ir para o trabalho, voar pelo mundo, ter comida na mesa? Sim, há a bomba atômica, mas também há anestesia.  

Quando se trata de vírus, a única arma que temos para combatê-los é a vacinação. A única. Antibióticos funcionam contra bactérias, um tipo de criatura completamente diferente. Higienização, para além da lavagem das mãos, é ineficaz. A vacina engana o sistema imune para que ele reconheça o vírus antecipadamente e proteja as células contra a invasão. Enganar o sistema imune é algo compreensivelmente problemático para pessoas que acreditam que seus corpos sabem o que fazem, se apenas forem saudáveis. Esse vírus, como constatamos pelo grande número de infectados aparentemente saudáveis, infelizmente não compartilha de tal crença.

Por causa desse tipo de raciocínio, algumas pessoas cometem o erro plausível de calcular que se a vacina tem uma eficácia de 95%, mas a taxa de sobrevivência de 99%, então por que não deixar que minha resistência natural se encarregue do problema? Na verdade, esse raciocínio é sensato quando aplicado ao resfriado comum, mas este coronavírus é matreiro e ainda não somos capazes de prever quem vai ter um caso grave de infecção e quem vai ter um caso leve. Com esse tipo de risco, você não deve apostar em nenhum desses dois números porque eles não têm nada a ver com você enquanto indivíduo. Como num cara ou coroa, há apenas 1% de chances de dar cara seis vezes seguidas. E mesmo se der cara cinco vezes seguidas, a probabilidade de dar cara novamente continua a ser 50/50…   

Um “não sabemos” ainda maior diz respeito aos efeitos de longo prazo associados ao SARS-CoV-2, como acontece com muitos vírus. O influenza de 1918 foi associado a um aumento dos casos de Parkinson, que dobraram ou triplicaram através de mecanismos que até hoje não compreendemos. O vírus da catapora pode se esconder no organismo de uma pessoa por 40 anos ou mais, e então reaparecer como um caso doloroso e às vezes debilitante de herpes zóster. A taxa de sobrevivência de 99% dos doentes de COVID-19 não significa nada, se dentro de 20 anos ele causar alguma doença pulmonar ou cerebral devastadora.

A principal vantagem das vacinas é que, como elas usam o sistema imune já existente, são incrivelmente seguras. Mais seguras que antibióticos, que têm vários efeitos colaterais, porque não fazem parte de nossa constituição normal e são matadores de células – principalmente células de bactérias, mas eles não têm alvos específicos e, por isso, deixam alguns danos colaterais à sua passagem.

Todas as drogas e tratamentos têm efeitos colaterais, mas em geral as vacinas são os que menos efeitos colaterais causam. As novas vacinas de RNA passaram por uma quantidade de testes de segurança bem acima do normal – múltiplos comitês independentes de revisão, um excepcional acompanhamento da imprensa e do público em geral, supervisão governamental e não-governamental e mais diversificada coorte de testes já realizada. Nada foi feito apressadamente, nenhum atalho foi tomado no processo.

Então, aqui vai a aposta da vacina. Vacinas são o procedimento médico mais seguro que temos. Elas também estão entre os mais eficientes, mas curiosamente isso não é importante para nossa aposta. Meu argumento sobre sua segurança vem porque vacinas são uma classe especial de ferramentas médicas. Elas são o único procedimento médico ou droga que é administrado a pessoas saudáveis. Todos os outros produtos ou tratamentos são aplicados a alguma patologia já existente – de resfriado a câncer. Por isso, vacinas têm de atingir níveis de segurança bem mais altos que os de outros medicamentos.

Você não pode pegar pessoas saudáveis e fazer com que adoeçam. Vacinas têm menos efeitos colaterais que virtualmente qualquer outra droga em que você pensar – como aspirina, por exemplo, que pode causar hemorragia interna, úlceras gástricas e até derrames. Mas como você está doente quando toma esses remédios, você aposta que os benefícios vão superar os possíveis efeitos colaterais. Com as vacinas, a aposta é bem mais simples – e muito mais parecida com a aposta original de Pascal. Elas podem ou não ser altamente eficazes (a eficácia de algumas vacinas é de apenas 60%), mas são tão seguras que tomar vacina é uma ação de baixo risco, enquanto não tomar vacina expõe você e outras pessoas a um risco considerável, isto é, ser infectado pelo vírus. Como acreditar ou não na vida após a morte, a barbada está com Pascal, que, acredito, teria ido para o primeiro lugar na fila da vacinação.   

 

Stuart Firestein é professor e presidente do departamento de ciências biológicas da Universidade Columbia, em Nova York. Dedicado a promover a ciência para um público mais amplo, ele é conselheiro do programa Public Understanding of Science da Fundação Alfred P. Sloan. Escrito originalmente para revista LeapsMag.

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