Festa de fim de ano é roleta russa de vírus

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16 dez 2020
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Muita gente está considerando a possibilidade de realizar encontros de família e festas neste fim de ano porque – afinal – nove meses de semiconfinamento já é demais, e se os netos não visitarem os avós agora, quando? E se este for o último Natal do titio de 80 anos? Coisas assim.

Já que parte significativa das pessoas com esse tipo de ideia parece impermeável ao fato de que levar o SARS-CoV-2 até a casa de um octogenário multiplica muito a chance de que este será o último Natal dele, há especialistas recomendando uma estratégia de “redução de danos”, análoga às de troca de agulhas para viciados em drogas: já que algumas pessoas são incapazes de evitar certos comportamentos perigosos, o melhor é dar a elas meios e oportunidades para tornar esse comportamento o menos perigoso possível.

Essas estratégias envolvem realizar as reuniões ao ar livre, sempre que possível, com um pequeno número de pessoas, mantendo o distanciamento de dois metros e com uso de máscaras. Se houver consumo de comida ou bebida, manter o distanciamento quando as máscaras forem retiradas e fazer a higiene constante das mãos, com água e sabão ou álcool 70%, principalmente antes e depois de tocar os talheres usados para servir os pratos. Não compartilhar talheres e utensílios. Se não der para ser ao ar livre, que seja num lugar com janelas bem abertas.

Se os convidados puderem fazer isolamento de dez dias antes da festa, melhor ainda.

 

Razões

É importante notar que esses comportamentos todos não são frescuras sem sentido ou rituais vazios, mas decorrem de tudo o que sabemos sobre o vírus: ele se transmite principalmente viajando a bordo de gotículas de saliva que emitimos quando falamos, e de secreção nasal, emitida quando expiramos. A máscara bloqueia parte das gotículas logo na origem, e é uma barreira para parte das que vêm de fora. O distanciamento reduz a probabilidade de gotículas completarem a viagem entre uma pessoa e outra.

O ambiente a céu aberto, ou bem arejado, dá espaço para as gotículas se dispersarem em várias direções e serem levadas embora pelo vento. O isolamento de dez dias reduz o risco de as pessoas presentes serem portadoras assintomáticas (e contagiosas) da doença. Álcool, água e sabão destroem os vírus que estejam nas mãos e que poderiam ser levados até as mucosas do rosto – boca, olhos, nariz –, portas de entrada do vírus no corpo humano.

Exagero? Não nos enganemos, reuniões de fim de ano, principalmente com idosos presentes, são, sim, perigosas. Toda reunião presencial com aglomeração de pessoas, nas condições atuais, é um jogo de roleta russa. O que as medidas de redução de danos fazem é tirar algumas balas do tambor. Mas a partir do momento em que nos encontramos com outras pessoas, que vêm de lugares diferentes e tiveram contato com mais outras, ele nunca estará vazio.

Segundo dados do CDC americano, o risco de uma pessoa maior de 75 anos morrer após contrair COVID-19 é 220 vezes mais elevado do que o de uma pessoa de 25 a 29 anos, também infectada com o vírus.

Pelas tabelas de mortalidade do IBGE de 2019, ainda sem a COVID-19 em cena, o risco de um brasileiro de 75 anos não viver para ver o próximo aniversário é de cerca de 3,5%. Levando em conta que a taxa de mortalidade da COVID-19 entre idosos pode chegar a mais de 10%, contrair SARS-CoV-2 multiplica por pelo menos três o risco de este ser o último Natal do vovô. E nem estou falando das sequelas duradouras que a doença pode deixar nos sobreviventes.

 

Fatalismo

O ser humano tem uma intuição ruim para lidar com riscos. Temos medo de eventos raros ou raríssimos (queda de avião, atentados terroristas, revoluções comunistas) e somos lenientes, às vezes criminosamente, em relação a fontes de perigo muito mais palpáveis (dirigir embriagado, fazer sexo sem proteção, votar em imbecis).

A percepção distorcida é provocada ou agravada por uma série de fatores, entre eles o caráter probabilístico da relação de causa e efeito (não é todo motorista bêbado que causa acidentes, não é todo idoso que contrai COVID-19 que morre) e o fato de haver efeitos, como a morte que vem semanas depois do contágio, que ocorrem muito depois das causas – a demora atenua a sensação de que as duas coisas estão ligadas.

Essa intuição capenga, somada a uma supervalorização da impulsividade irracional e da espontaneidade na cultura contemporânea (“siga seu coração”, “use a Força”, “não pense, sinta”) e a uma visão fatalista da vida – as coisas acontecem “quando e porque Deus quer” –, gera problemas, muitos problemas, e não é de hoje. No contexto da COVID-19 em época de festas, mais do que problemas, tem um potencial grave de gerar tragédias.

 

Rifa da morte

Psicólogos e economistas usam diversos truques narrativos e metáforas na tentativa de materializar, para o público, o real significado de riscos e probabilidades. No caso da COVID-19, gosto de pensar em termos de números de rifa.

Acho que todo mundo já viu cartelas de rifa como as que se vendem em papelarias: tabelas com quadradinhos marcados com palavras ou números, que as pessoas que compram a rifa assinam. Quanto mais quadradinhos uma mesma pessoa assina, maiores suas chances de ganhar.

Segundo números mais recentes, a cada dia cerca de 900 brasileiros são “sorteados” para morrer de COVID-19. Mas as chances não são iguais para todos os cerca de 212 milhões de habitantes do país. Alguns têm muito mais números de rifa assinados do que os outros, e a grande maioria das crianças, em especial, não tem nenhum.

Reunir família e amigos antes de termos uma parcela significativa da população vacinada é simplesmente comprar mais números de rifa para todos. Alguns, como os idosos e portadores de comorbidades como diabetes ou hipertensão, já têm uma boa quantia de números inscritos. Outros, os mais jovens, têm menos.

Pode haver casos de pessoas cujo número em outras rifas macabras – a da depressão, do suicídio – esteja, ou pareça estar, mais próximo de sair do que na da COVID-19. Essa é uma conta que cada um tem de fazer por si. Mas vamos, pelo menos, fazer o máximo para reduzir ao mínimo o número de novas assinaturas dessa rifa em particular – de balas no revólver da roleta russa da pandemia.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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