Pandemia põe em jogo verdadeiro sentido da palavra "ciência"

Artigo
9 dez 2020
Imagem
Jovem Frankenstein

 

A suposta retomada do respeito e da valorização da ciência, pela sociedade em geral, tem sido apontada como uma espécie de “prêmio de consolação” pela tragédia da pandemia. É inegável que todos os olhos se voltaram para a ciência em busca de explicações, planos de ação e soluções, e que cientistas e comunicadores de ciência ganharam espaço na grande mídia, ajudando os profissionais de jornalismo a informar corretamente a população.

No Brasil, particularmente, com um governo empenhado em desinformar e espalhar notícias falsas, fazendo pouco caso da gravidade da pandemia e promovendo – e financiando – ilusões de prevenção e cura, este trabalho torna-se ainda mais essencial. Se não fosse o esforço conjunto da mídia tradicional e dos bons cientistas, não teríamos campanhas de distanciamento social, de uso de máscaras, e esclarecimentos sobre tratamentos e vacinas. Isso tudo deve garantir que a ciência venha a ocupar uma posição de destaque no Brasil pós-pandêmico, certo?

Infelizmente, não. O que temos visto, na prática, por parte dos agentes políticos, é uma assimilação quase caricatural da linguagem e dos trejeitos da ciência para fins populistas. Parece inevitável, sim, que alguma coisa chamada “ciência” saia desta crise global coberta de prestígio. A questão é o quanto essa “ciência” fará realmente jus ao nome.

A autoridade legítima que a ciência tem para falar sobre a realidade do mundo físico e biológico virou ferramenta de disputa política, ideológica e de teorias da conspiração. Uma população que nunca foi preparada para isso hoje debruça-se sobre artigos científicos e protocolos de pesquisa e tira deles “suas próprias conclusões” – na verdade, conclusões que já se encontravam implícitas nos vieses e predisposições trazidos à leitura desinformada, ou sugeridas por grupos de interesse, quando não promovidas por mentalidades conspiratórias.

Conclusões científicas, interpretadas por comentaristas da grande mídia ou de redes sociais tornam-se, assim, um “bufê de quilão” intelectual. Pode-se escolher a que agrada mais ao paladar ou produzir combinações criativas, como goiabada e purê de batata. Neste canto, a “prova” de que cloroquina cura, ou de que vacinas alteram o DNA e instalam chips para nos controlar.

Para quem prefere um prato menos picante e mais equilibrado, há quem diga que vacinas em geral são seguras, mas estas, especificamente, foram feitas em muito pouco tempo e com tecnologias muito novas, e que por isso podem ser perigosas.

E ainda temos os bufês desequilibrados, que acham que todo dia é dia de caviar ou feijoada, apresentando a exceção como regra. Aqui, podemos escolher os pratos que trazem o perigo de reinfecção pelo vírus SARS-CoV-2 e dos efeitos colaterais de vacinas. Afinal, como dizem no jornalismo, “cachorro morde pessoa” não é notícia, mas “pessoa morde cachorro”, sim.

O problema é que em ciência, “pessoa morde cachorro” pode não ter qualquer relevância. Noticiar, sem a contextualização adequada, supostos efeitos colaterais de uma vacina em fase de testes induz pessoas a imaginar que isso é algo grave e inédito, e não, em princípio, uma ocorrência corriqueira em testes de medicamentos e vacinas.

Junte-se o fato de que realmente algumas empresas farmacêuticas estão fazendo por merecer a fama de priorizar lucro e valorização na bolsa acima da transparência na comunicação da ciência, e temos então a receita perfeita para o desastre, já previsto por Carl Sagan há 30 anos, quando dizia que “vivemos em uma sociedade altamente dependente de ciência e tecnologia, onde ninguém sabe quase nada sobre ciência e tecnologia”.

O desastre pode vir sob a forma de um movimento antivacinas sem precedentes na história brasileira, maior até do que o que desencadeou a Revolta da Vacina no século passado. De um movimento anticiência onde o problema real não é o prestígio social da ciência, mas qual a “ciência”, afinal, que desfruta desse prestígio. E voltamos, então, aos problemas que nós do IQC estamos tentando apontar há anos. Não adianta ter um grande número de pesquisas de opinião mostrando que a população ama e aprecia ciência, se não sabemos de que ciência estamos falando.

Qual ciência a sociedade está escolhendo no bufê? E como explicar que ciência não vem em pratos customizados para agradar a diferentes paladares?

Há um risco sério de que a caricatura pós-moderna, que apresenta a ciência como apenas “mais uma narrativa” em pé de igualdade com todas as alternativas – onde a decisão de combater uma doença infecciosa com vacinas ou exorcismos, por exemplo, é uma questão de “disputa de poder”, e não da verdade dos fatos –, acabe incorporada de vez ao senso-comum. Basta trocar “exorcismos” por “cloroquina” ou “ozonioterapia”, no exemplo anterior, para vermos o quanto já estamos próximos disso.

Desarmar essa bomba-relógio vai requerer cuidado, esforço e uma disposição para autocrítica tanto do establishment científico – que, consistentemente, opta por omitir-se quando seus emblemas de prestígio, como títulos, sociedades, periódicos, etc., são sequestrados por aventureiros – quanto da parcela da imprensa que decidiu tentar ganhar a vida trocando precisão e contexto por cliques e audiência, parcela presente em veículos estabelecidos e também nos canais informais.

Chegamos ao que pode ser o ponto de inflexão da pandemia – o momento da aprovação das primeiras vacinas que comprovaram segurança e eficácia – não com a ciência “valorizada” ou “desacreditada” (os dois polos mais comumente citados neste tipo de debate) mas, sim, disputada.

Essa disputa não será vencida pela comunicação triunfalista da ciência – “ciência funciona!”, “siga a ciência!” – porque, agora, é o domínio do conceito de “ciência” que está em jogo. Será vencida por uma educação metacientífica: a comunicação da lógica e dos processos que embasam e justificam a credibilidade construída pelas ciências. E a denúncia, sem tréguas, de tudo que não está à altura, mas se faz passar por elas aos olhos do público.

Natalia Pasternak é pesquisadora visitante do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência e coautora do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

Sua Questão

Envie suas dúvidas, sugestões, críticas, elogios e também perguntas para o "Questionador Questionado" no formulário abaixo:

Ao informar meus dados, eu concordo com a Política de Privacidade.
Digite o texto conforme a imagem

Atendimento à imprensa

11 95142-8998 

11 95142-7899