O poder dos cristais: usos modernos, mitos e supostas propriedades mágicas

Artigo
23 out 2020
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Estrutura de cristais

Fora do âmbito científico, ouço que os cristais têm uma gama de propriedades, desde o mundano ao espiritual. Se diz que os cristais podem melhorar o rendimento de seu carro até que os cristais podem fazer com que nos sintamos melhor, mais saudáveis e mais inteligentes. Mais extravagante é a afirmação de que o poder dos cristais foi usado pelos habitantes do continente perdido de Atlântida (como fonte de poder, para aprender, se comunicar e curar-se) e pelos egípcios para construir suas pirâmides. E os cristais de quartzo e pedras preciosas constituem um meio pelo qual os códigos cristalinos de consciências pessoais e planetárias se conectam com dimensões mais altas (signifique isto o que signifique). Também se ouve dizer que os cristais estão vivos, e que certos espíritos vivem em suas facetas.

Os cristais poderiam ser programados, e assim amplificar e transferir pensamentos curativos, e ativar os “centros energéticos” (chakras) do corpo. O termo “programar” é tomado da computação mas, no lugar de usar um teclado, você usaria diretamente seus pensamentos. Como em muitas afirmações pseudocientíficas, se faz referência à “energia”, termo do qual se abusa com suma frequência. Esta energia que irradiaria dos cristais ativaria e potencializaria as emissões mentais graças a umas supostas propriedades canalizadoras, transformadoras e amplificadoras. Inclusive se afirma que estas propriedades são utilizadas em nossa tecnologia. Em particular, o quartzo seria quele que especialmente contém uma energia de poder ilimitado.

A ideia de que os cristais estão vivos surge do seguinte silogismo: só os seres vivos podem crescer; os cristais crescem; portanto, os cristais estão vivos. É certo que os cristais crescem, mas isto não significa que estão vivos em um sentido biológico. Afinal, as tempestades crescem, os desertos crescem, a Lua cresce, um rio cresce, uma ideia ou um boato também podem crescer. Os cristais crescem de forma natural no que pode ser um espaço de horas até séculos, dependendo das condições ambientais. Os cristais de silício podem ser crescidos artificialmente e formam parte da maioria dos aparelhos eletrônicos que usamos hoje. E óbvio que por crescermos cristais não nos qualifica para afirmar que criamos vida.

Mas, o que é um cristal?

Hoje sabemos que a matéria que constitui os corpos não é contínua, mas formada por pedaços muito pequenos. De fato, a matéria é formada por átomos. O átomo constitui a menor porção de uma substância que pode entrar ou intervir em reações químicas conservando suas características. Os átomos podem interagir entre si, mediante o que se conhece como ligações atômicas, e assim se unem para formar moléculas e corpos sólidos. Não entraremos em mais detalhes, mas é necessário esclarecer que, em última instância, a interação entre os átomos é de origem elétrica.

Os sólidos podem ser classificados em dois grandes grupos: os sólidos amorfos e os sólidos cristalinos. Nos primeiros, os átomos podem estar entrelaçados firmemente, mas têm pouca ou nenhuma ordem na maneira que estão dispostos ou acomodados. Ao contrário, os átomos nos sólidos cristalinos adotam uma estrutura que se caracteriza por sua regularidade ou periodicidade. Em 1912, Max von Laue, físico alemão, provou que os sólidos cristalinos (cristais) consistem em um arranjo periódico de átomos e marcou assim o nascimento da física do estado sólido como um ramo da física.

A palavra “cristal” provém de “kryos”, que significa “frio” em grego, no que alude à formação do gelo a partir da água. O nome também conota transparência, razão pela qual os gregos deram o nome “krystallos” ao quartzo, já que acreditavam que se tratava de uma variedade de gelo que não se fundia à temperatura ambiente. A maioria dos cristais naturais se forma a partir de gases sob pressão na parede interior de cavidades rochosas denominadas geodes (ou geodos). O cristal resultante depende das condições e da disponibilidade de elementos, da temperatura, da pressão e da velocidade de crescimento e de resfriamento. Assim, o cristal de quartzo se forma quando o silício e o oxigênio se encontram nas proporções adequadas, sob condições de temperatura e pressão apropriadas.

Quando pensamos e em cristais, vem à mente diamantes, rubis, copos de vidro (que não são de cristal) e também superfícies simétricas, arestas e pontas agudas. Mas os cristais podem ter diversas formas e padrões. Por exemplo, o sal e o açúcar que se encontram na nossa mesa diária parecem grãos disformes, mas, na realidade, se tratam de pequenos cristais solúveis em água (ver Fig.1). Nossa visão também falha em distinguir outro cristal junto de nossa xícara de café. Falamos da colherinha metálica. Os metais têm estruturas cristalinas, embora raramente adotem as formas simétricas regulares associadas aos cristais. Os objetos metálicos que vemos cotidianamente estão constituídos por milhares de pequenos cristaizinhos unidos no que se denomina policristal, à diferença do termo monocristal, no qual o material como um todo apresenta um ordenamento atômico.

Cristal de sal
Estrutura cristalina do sal comum, constituída por átomos de cloro e sódio ordenados de forma alternada

Por que alguns cristais são fortes e outros (como o talco, silicato de magnésio) se desfazem ao menor toque? Por que alguns cristais apresentam formas regulares e simétricas enquanto outros crescem de forma irregular? A resposta é energia, a energia das ligações atômicas. A maioria dos elementos e compostos inorgânicos forma cristais porque os padrões atômicos cristalinos são energeticamente mais favoráveis do que uma pilha de forma desordenada ou amorfa. A medida que átomos e moléculas se juntam, preferem uma posição mais “cômoda”, aquela para qual a energia de formação é maior, e passam assim a formar parte do cristal. Para que isso ocorra, devemos brindar condições apropriadas. Se, por exemplo, se faz um esfriamento muto rápido, possivelmente os átomos não disporão de tempo para acomodarem-se, e daí resultará um sólido amorfo.

Alguns mitos sobre o vidro

Existem vários mitos sobre o vidro. O vidrio é conhecido pela Humanidade desde muito tempo. De fato, foram encontrados objetos de vidro fabricados na Mesopotâmia uns 5 mil anos antes de Cristo. Se afirma regularmente que existem taças de vidro e outras de cristal, que seria um material mais fino. Na realidade, este “cristal” também é um vidroo, de melhor qualidade, com chumbo na sua composição. Também sabemos que o vidro se comporta como um material elástico, isto é, ao aplicar-lhe uma força ele se deforma, mas, ao tirar a força, ele recobra sua forma original. Isto quer dizer que não apresenta deformação plástica. Mas possivelmente o mito mais intrigante seja o que diz que os vitrais das catedrais góticas se deformaram por seu próprio peso com o passar dos séculos.

O vidro é um sólido à temperatura ambiente. Se não fosse assim, não poderíamos ter lentes de vidro nos nossos óculos, e menos ainda instrumentos de vidro de precisão. Mas muitos afirmam que o vidro é na realidade um líquido muito viscoso, o que dá lugar para que flua muito lentamente por ação de seu próprio peso. Isto teria ocorrido com os vitrais das catedrais góticas, que apresentariam assim uma espessura maior na parte inferior. É certo que o vidro é um sólido amorfo, amorfo como um líquido no que não há uma ordem cristalina, mas isso não implica que flua como faz um líquido. Se fosse assim, por que no há indícios de fluência em vidrios naturais, depois de milhões de anos? Ou por que isso não foi observado em outros vidros mais antigos, fabricados por babilônios, egípcios, fenícios ou romanos? Só se faz referência aos vitrais das catedrais góticas, não as românicas, que são anteriores. Algo interessante deste mito é que parece ser argentino; ao menos da minha parte nunca escutei isso fora de nosso país.

Uso moderno dos cristais

Em 1880, Jacques e Pierre Curie descobriram que os cristais de quartzo sujeitos a pressão se convertiam em pequenas baterias. Este efeito, que um material reacomode suas cargas elétricas ante uma pressão mecânica, se denomina piezoeletricidade. Os materiais piezoelétricos, entre eles o quartzo, também mostram o efeito oposto, quer dizer, se deformam quando se aplica a eles um campo elétrico. Os cientistas e engenheiros chamam estes materiais transdutores, porque transformam uma forma de energia em outra, neste caso, energia elétrica em mecânica e vice-versa.

A piezoeletricidade é um fenômeno físico real, um cristal excitado eletricamente vibra, e  se ele é pressionado mecanicamente pode dar origem a uma corrente elétrica mensurável. Esta propriedade se mostra muito útil para construir um oscilador. De fato, a maioria dos relógios de hoje utilizam a frequência natural de ressonância de um cristal de quartzo, assim como no passado se utilizavam pêndulos. Devemos ressaltar que os cristais, assim como os pêndulos, não geram energia; você saberá por experiência que se necessita de uma bateria ou uma corrente para que estes dispositivos funcionem. E os relógios de pêndulo também requerem uma fonte de energia, tipicamente um peso em uma corda que de tempos em tempos tem que ser elevada para restituir a energia consumida para que o relógio funcione.

É certo que o primeiro laser foi de um cristal, um rubi, mas isto tem pouco que ver com a cristalinidade do rubi. De fato, as impurezas no cristal de rubi são a fonte da luz vermelha deste laser. Desde então, foram construídos lasers de uma variedade de substâncias, entre elas gases e líquidos. Cabe assinalar que os átomos individuais são os estimulados, não o cristal como um todo. O laser é hoje utilizado em uma variedade de aplicações, mas não é prova do “poder dos cristais”. As energias que os lasers transformam são energias reais e, neste aspecto, eles são bastante ineficientes, já que a energia luminosa obtida é uma pequena fração da fornecida.

Sem dúvida, a contribuição mais importante dos cristais hoje se deve aos cristais semicondutores, o silício em particular, base da eletrônica moderna. À margem de outras aplicações, o silício tem um interesse especial para a indústria eletrônica, já que se trata do material básico para a fabricação de circuitos eletrônicos. A condutividade do silício, como em todo semicondutor, pode ser controlada adicionando pequenas quantidades de impurezas chamadas “dopantes”. A capacidade de controlar as propriedades elétricas de um semicondutor deu origem ao desenvolvimento dos dispositivos de estado sólido. Os chips de computadores e outros aparelhos eletrônicos são, essencialmente, cristais de silício. Estes cristais, criados pelo homem, constituem o substrato sobre o qual se constroem os circuitos integrados. As características do chip dependem do circuito eletrônico; em particular, o circuito é programado, não o cristal.

A tecnologia eletrônica começa com a obtenção de lingotes monocristalinos de silício de muita alta pureza de forma cilíndrica de 10 a 30 cm de diâmetro e de 1m a 2m de comprimento. Este cristal é cortado para produzir fatias circulares de aproximadamente meio milímetro de espessura. Sobre estas fatias se constroem os circuitos integrados (ver Fig.2). Uma fatia pode chegar a ter centenas de circuitos ou chips, tipicamente com entre 1 a 10 milímetros de lado. Os circuitos são separados, encapsulados e os terminais necessários conectados. Finalmente, a fatia é selada com um material plástico que lhe dá o aspecto exterior que se observa regularmente nos circuitos eletrônicos.

Circuito integrado
Imagem da superfície de uma folha de silício. Note o ordenamento atômico e a formação de cadeias de pares de átomos de silício, os defeitos superficiais e o degrau à direita. A imagem de cerca de 13 nanômetros de lado foi obtida por microscopia de tunelamento

O circuito integrado possibilitou a incorporação de vários transistores em um único substrato de silício, e assim permitiu uma redução de preço, tamanho e probabilidade de erro. O microprocessador se converteu em uma realidade em meados da década de 1970, com a introdução do circuito de integração em grande escala, com milhares de transistores interconectados sobre um único substrato de silício. Os circuitos integrados tornaram possível a fabricação dos computadores atuais. Sem eles, os circuitos individuais e seus componentes ocupariam muito espaço para poder se ter um desenho compacto. Um circuito integrado típico consiste de distintos tipos de elementos integrados em uma única peça de silício. Nos menores, os elementos do circuito podem ter o tamanho de apenas algumas centenas de átomos, o que permitiu a fabricação dos sofisticados circuitos de hoje.

Comentários finais

Armazenar a informação é crucial para que as novas gerações disponham dos feitos das prévias. A Humanidade encontrou vários métodos para conservar informações de diversos tipos. Desejamos guardar ideais, música e imagens. Para isso, não faz muito tempo atrás, escrevíamos livros, gravávamos discos e tirávamos fotografias. Com a tecnologia eletrônica atual, toda a informação é armazenada na forma de bits, séries de uns e zeros que a codificam, com a vantagem de que o mesmo dispositivo serve para guardar uma foto, um documento ou uma canção com capacidades inimagináveis há poucos anos. A eletrônica baseada em cristais de silício deu origem a fantásticos avanços tecnológicos e suas consequências sociais foram impactantes; considere por um momento o que os celulares mudaram em nossas vidas. Creio que isto sim se constitui, no sentido figurado, o verdadeiro poder dos cristais.

Celso M. Aldao é professor titular do Departamento de Física da Faculdade de Engenharia da Universidade Nacional de Mar del Plata e pesquisador superior do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas da Argentina (CONICET). Artigo publicado originalmente na Revista PENSAR

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