Ação para promover "kit covid" eleva insensatez a política de Estado

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26 set 2020
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diadmad

Caso não seja só mais um factoide gestado pelo gabinete do caos (anexo ao gabinete do ódio) do Planalto, o governo federal planeja abrir o mês de outubro com um “Dia D” de conscientização sobre a COVID-19. Conscientização a respeito do uso de máscaras, da necessidade de evitar aglomerações? Não, da importância – que é nenhuma, de acordo com a melhor evidência científica disponível – do “tratamento precoce” da doença com o tal “kit covid”, que contém hidroxicloroquina, azitromicina e alguns outros fármacos populares mas menos cotados, como a ivermectina.

Se o plano realmente existir e vier a ser levado a cabo, será talvez o maior esforço e investimento público em mentira e desinformação da atualidade fora do Oriente Médio, onde alguns governos ainda patrocinam a distribuição dos “Protocolos dos Sábios do Sião” – uma fraude literária que culpa judeus por tudo que há de mal no mundo –, e uma perversão tétrica da fantástica capacidade histórica do Ministério da Saúde para promover campanhas de sucesso e grande relevância pública, como as de vacinação e de informação sobre doenças sexualmente transmissíveis.

Uma acusação comumente lançada contra governos de esquerda é a de que muitas vezes essas administrações caem na tentação de usar o aparato estatal não para promover o bem comum, mas para fazer avançar agendas ideológicas distantes da realidade e das reais necessidades do povo. É uma ironia – que seria até divertida, não houvesse vidas humanas em jogo – que o governo que, desde a redemocratização, mais tem se esforçado em manietar o Estado para satisfazer taras ideológicas particulares seja, precisamente, um que se identifica como de direita conservadora.

 

A evidência

Não há evidência crível de que os componentes do tal “kit covid” promulgado pelo Palácio do Planalto tenham qualquer utilidade na mitigação dos efeitos da COVID-19. Já tratamos do assunto nestes mesmo espaço, outras vezes, mas resumindo: os estudos científicos de melhor qualidade conduzidos sobre o assunto mostraram que a cloroquina (assim como a hidroxicloroquina) é inútil, e potencialmente perigosa, em qualquer estágio da doença.

Os demais itens do “kit covid” para tratamento precoce também carecem de evidências cientificas, e alguns podem trazer danos à saúde, individual e coletiva. O uso associado do antibiótico azitromicina com a hidroxicloroquina nunca foi avaliado em testes clínicos de segurança.

Embora ambos os medicamentos tenham sido avaliados separadamente e considerados seguros, nas doses de bula, para as doenças designadas – malária e doenças autoimunes no caso da hidroxicloroquina, e infecções bacterianas no caso da azitromicina – a interação medicamentosa destes compostos, usados juntos, nunca foi avaliada. Sabendo que ambos listam arritmia cardíaca como possível efeito adverso, o uso da combinação em pacientes acometidos por uma virose que também ataca o coração deveria ser visto com especial cautela.

Além disso, azitromicina é um antibiótico utilizado no Brasil para o tratamento de doenças infecciosas, como gonorreia, a segunda doença sexualmente transmissível mais prevalente no mundo. Nos últimos anos, foi observada uma crescente resistência da bactéria Neisseria gonorrhoeae a diversos antibióticos. O uso indiscriminado do antibiótico nestes kits para COVID-19 pode contribuir ainda mais para o surgimento de bactérias multirresistentes. Além disso, a prescrição de antibióticos no Brasil é regulamentada por lei que prevê retenção de receita, de modo que a mera presença da azitromicina em kits de livre distribuição já é ilegal.

A ivermectina é um medicamento indicado para o tratamento de piolhos, sarna, e algumas verminoses. Não há evidencia científica que embase seu uso como prevenção ou tratamento da COVID-19, como já comentamos aqui.

O uso de vitaminas e suplementos também não é indicado para prevenção ou tratamento de doenças, a não ser especificamente a carência de determinada vitamina, com prescrição médica.

Mas há quem diga que o kit funciona, e quem colecione “casos de sucesso” de um ou mais dos fármacos incluídos nele. O fato, no entanto, é que esses relatos não provam nada: para que tivessem valor, seria necessário, no mínimo, compará-los aos casos de insucesso, de pessoas que usaram o kit, ou seus componentes, e ainda assim evoluíram para quadros graves de COVID-19. Mas essas histórias de frustração, que certamente existem, não são coletadas e nem propagadas com afinco pelo fã-clube do governo.

Relatos de caso não valem como evidência conclusiva. Podem ser explicados por vieses cognitivos (quando a mente nos faz ver ou concluir o que gostaríamos de ver ou concluir, não o que está realmente lá) e erros de atribuição (quando, de uma série de fatores que poderiam ser causa de um fenômeno, pinçamos o errado – talvez por ser o que mais harmoniza com nossas inclinações).

Acadêmicos comprometidos com o “kit” bolsonarista tentam ainda reanalisar a literatura científica para “demonstrar” que os estudos com resultados negativos são, na verdade, positivos. Esses esforços lembram o contorcionismo criacionista para mostrar que o registro fóssil confirma não a teoria da evolução, mas sim o relato bíblico da Arca de Noé, e contam com o mesmo nível de credibilidade.

 

A negação

Ao mencionar, em seu discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, as assimetrias econômicas evidenciadas pela pandemia, o presidente Jair Bolsonaro optou não por destacar a escassez de insumos para testes diagnósticos ou o problema do acesso equitativo às vacinas, mas por lamentar que “o insumo da produção de hidroxicloroquina sofreu um reajuste de 500% no início da pandemia”.

Não se deve descartar a possibilidade de o “Dia D da Cloroquina” ser a forma encontrada pelo presidente para dar vazão à superprodução do fármaco realizada pelo Exército e, assim, justificar o desperdício de recursos envolvido na empreitada. É difícil determinar quais ações do governo são fruto de cálculo frio para evitar ter de admitir erros crassos, e quais são impulsionadas por paixão ideológica. Talvez a distinção não seja possível.

Quando a realidade crua dos fatos deixa de sustentar uma certa visão de mundo, os adeptos dessa visão veem-se confrontados por um cardápio limitado de opções. Mudar de ideia é uma. Construir teorias de conspiração é outra: afinal, talvez “eles” estejam manipulando os fatos e a realidade seja, na realidade, compatível com a nossa fé.

 

O espantalho

A ideia de que a opinião científica predominante reflete não a melhor evidência, mas um programa político, é outra dádiva do criacionismo ao mundo, um mote que depois foi adotado por interesses econômicos durante os debates sobre fumo passivo e aquecimento global.

No caso da cloroquina, o que assombra as mentes febris é uma ampla conjuração “de esquerda” que prefere ver gente morrendo a dar o braço a torcer e admitir que Trump e Bolsonaro “estão certos”. 

Para se sustentar, essa teoria requer uma ação maligna, coordenada, envolvendo não apenas os principais periódicos acadêmicos da área de medicina e os cientistas que conduzem estudos clínicos de boa qualidade, como também a imprensa global, que “esconderia” o mérito da cloroquina ao escrever sobre experiências de sucesso no controle da doença. São os mesmos espantalhos erguidos contra o consenso científico do aquecimento global. Só as roupas é que mudaram.

 

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência e coautora do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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