Por que criticar medicinas alternativas?

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12 jun 2020
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bramido de rádio

As Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) são terapias oferecidas gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para tratar, geralmente, doenças crônicas, como hipertensão e depressão. As PICS são complementares porque, em termos ideais, devem ser prescritas como "um tcham a mais" junto à terapia convencional.

Hoje, há 29 terapias desse tipo oferecidas pelo SUS. Algumas, que envolvem atividade física, meditação ou o uso de plantas medicinas (fitoterapia) podem ter efeitos mensuráveis e cientificamente comprovados sobre a saúde humana, ainda que sua aplicação por “terapeutas” sem formação formal em medicina, educação física ou psicologia/psiquiatria traga riscos. Muitas das demais, no entanto, apelam para forças, “energias” ou conceitos anatômicos (como os “meridianos” da acupuntura) cuja existência carece de base científica.

Dentre essas terapias, todas descritas no site do Ministério da Saúde, estão a Homeopatia, Florais de Bach, Ozonioterapia, Naturopatia e Reiki. 

 

Homeopatia

A homeopatia, diferente da fitoterapia (com a qual é frequentemente confundida), não envolve concentrações significativas de extratos de plantas e seus produtos não passam por testes clínicos antes de serem aprovados. Há preparações homeopáticas de origem vegetal, animal, mineral e até baseadas em raios solares ou ondas sonoras. Seu princípio fundamental é uma suposta “lei da natureza” enunciada originalmente pelo alquimista Paracelso: similia similibus curantur (do latim: "semelhante pelo semelhante se cura").

 

Ultradiluição, dinamização e memória da água: o nada é tudo?

 

Imagine um copo cheio de café forte. Se você tomar tudo, provavelmente ficará elétrico durante algumas horas. Agora, imagine que você pegou uma gota desse copo, transferiu para um litro de água, deu uma chacoalhadinha e tomou. Com certeza, você não terá mais tanta energia. Por fim, imagine que você pegou uma gota desse litrão de café diluído e diluiu ainda mais, a ponto de não sobrar uma única molécula de cafeína na água. 

Na homeopatia, diz-se que essa ultradiluição seguida de uma dinamização - ou "chacoalhar vigorosamente” - faz com que a solução final cause o efeito contrário ao do café normal (sono, neste caso). Alguns preparados homeopáticos também levam álcool. Há preparações cujo teor de álcool pode chegar a 40% do homeopático líquido. 

É possível fazer homeopático de tudo, desde moléculas envolvidas na alergia (alérgenos, como pólen) até pedaços do Muro de Berlim, e esses produtos são recomendados para tratar insônia, depressão, hipertensão, dores musculares, ansiedade etc. 

Inclusive, não é raro encontrar em grupos antivacinas a promoção exacerbada de produtos homeopáticos para "prevenir" as reações adversas das vacinas (febre, inchaço) e até para substituir as vacinas (homeoprofilaxia e nosodos). 

Não há evidências científicas robustas o suficiente que mostrem que a homeopatia tenha eficácia. Ou melhor, não existem diferenças entre placebo e homeopatia, seja ela em soluções (líquida) ou em comprimidos (a solução ultradiluída é aspergida sobre bolinhas de açúcar). 

 

Ozonioterapia

Na ozonioterapia, usa-se o gás ozônio (O3) para tratar todas as doenças e condições possíveis, como infecções, câncer, envelhecimento e depressão, de formas realmente inusitadas. 

O ozônio, como diz a Ozonioterapia, é um "anti-inflamatório" e "microbicida" potente. Sim, o ozônio é usado como microbicida. Mas de modo algum é um anti-inflamatório. O gás é tão reativo em meio biológico que gera espécies reativas de oxigênio (EROs), responsáveis pela inflamação, envelhecimento e até câncer (as EROs interagem com o DNA e causam aberrações cromossômicas e mutações em genes importantes, podendo "ativar" genes que induzem o câncer). 

O ozônio pode ser aplicado na pele para "evitar o envelhecimento" e matar os micróbios. E, pasmem, pode ser aplicado via retal. Nesta modalidade, o médico introduz um cano no reto do paciente, insufla com ozônio e alega curar depressão, "reorganizar" a microbiota intestinal, curar aids, SARS (sim, já propuseram para o novo coronavírus), autismo e síndrome de Down.

Como a homeopatia, não apresenta nenhum resultado benéfico ao paciente, e inclusive pode ser perigoso. Nos EUA, o Food and Drug Administration (FDA, a Anvisa de lá) define a terapia como perigosa e proíbe a prática.

 

Reiki

O Reiki é uma prática de "canalização da energia" por imposição de mãos, semelhante a um passe espírita. De acordo com o Ministério da Saúde, "busca fortalecer os locais onde se encontram bloqueios – 'nós energéticos' – eliminando as toxinas, equilibrando o pleno funcionamento celular, e restabelecendo o fluxo de energia vital – Qi". A prática que conhecemos é ocidentalizada (ou apropriada) do Japão. Indico o vídeo do canal Física e Afins sobre o tema. Existem estudos a respeito, com resultados nada bons ou ainda piores.

 

Argumentos comuns

Eu faço uma dessas terapias e faz diferença pra mim! E aí?

Sim, você pode tomar homeopatia e, de alguma forma, provavelmente verá algum resultado. A homeopatia ou qualquer pseudociência é "confirmada" quando um paciente alérgico para de ter alergia, ou uma dor de garganta passa. Mas relacionar isso ao uso de homeopatia e não, por exemplo, ao curso natural da doença, a mudanças de dieta ou ambiente, a outros medicamentos usados ou, mesmo, ao efeito placebo, é perigoso. Correlação não define causa.

É exatamente o mesmo argumento que os apoiadores da cloroquina usam: "usei quando estava com COVID-19 e melhorei, logo a cloroquina é a cura". Sendo que, em cerca de 90% dos casos, o vírus some sozinho, sem que se faça nada além dos cuidados mais óbvios, como repouso e hidratação.

O número de casos de autismo aumentou na mesma proporção do consumo de vegetais orgânicos no mundo, mas isso comprova que o autismo é causado por orgânicos (ou por outras coisas que também têm aumentado com o passar do tempo, como o uso de vacinas ou as assinaturas de TV a cabo)? Não. 

 

A Fé cura! Não podemos ser prepotentes usando a ciência

Já fui espírita e adorava a sensação que as mãos na minha cabeça geravam. Não é Reiki, mas é a mesma coisa.  Particularmente, saía muito relaxado das sessões, como se a energia "ruim" fosse liberada do meu corpo. Tomava até água "energizada", que havia recebido o passe espírita. Mas são outros quinhentos quando uma prática religiosa/filosófica é colocada no mesmo patamar de importância que a medicina moderna. 

Se essa prática religiosa (que depende da fé) - assim como a homeopatia de certo modo - é oferecida pelo SUS, um sistema que deve basear suas escolhas em critérios científicos -, por que não financiamos exorcismos com o orçamento da Saúde?

A fé pode ser um ponto de apoio importante para certos pacientes em tratamento, mas a fé é uma questão pessoal, de foro íntimo. Não cabe ao Estado ou ao sistema público de saúde validá-la, ou usá-la como trampolim para subsidiar práticas pseudocientíficas. Se a "energia quântica" das ultradiluições homeopáticas curam infecções, por que não usar homeopatia para curar ou prevenir o novo coronavírus e o sarampo (como querem os grupos antivax)? Simples, não? 

O fato é que nada no universo é tão simples quanto uma ideologia ou uma filosofia "holística" faz parecer. E, a cada relativização do conhecimento, um cientista é menosprezado pela população e pelo governo.

 

Há uma pandemia mundial. Por que se preocupar com essas pseudociências no SUS?

Essas práticas não são gratuitas e custam caro ao orçamento reduzido do SUS. De acordo com pesquisadora da Fiocruz, que acompanha as PICS, o orçamento é correspondente a 0,008% (R$ 2 milhões) do orçamento total do SUS e, diz a autora do texto, traz benefícios ao SUS ao promover a saúde e prevenir doenças. A autora não mostra como essas práticas trouxeram benefícios e nem o orçamento discriminado por PIC.

Este valor certamente está subestimado, mas, mesmo que seja baixo, com esse orçamento (nada transparente) é possível investir em programas realmente eficazes na prevenção de doenças, como vacinas, álcool em gel, sabão ou até EPIs para os profissionais de saúde.

O Conselho Nacional de Saúde recentemente recomendou a adoção dessas práticas no contexto da pandemia, dado que não há medicamento eficaz contra o vírus. O mesmo Conselho, curiosamente, repudia o uso da cloroquina devido à escassez de comprovação científica. A recomendação é mais uma medida política do que científica, uma contradição que confunde a população.

 

Pseudociências para você são conhecimentos orientais milenares, seu ocidental!

Acho este argumento particularmente engraçado porque, apesar de ter todo um fenótipo asiático (tenho origem paquistanesa), as pessoas têm realmente coragem de olhar para a minha barba e meu nariz e me chamar de eurocêntrico/ocidental. 

Virtualmente todas as pseudociências vendidas no Ocidente são ocidentais ou ocidentalizadas (como Reiki e Acupuntura). Homeopatia, ozonioterapia, terapia com cristais, aromaterapia, biodança, constelação familiar etc. são todas europeias. A Medicina Tradicional Chinesa (MTC) segue outra linha, e eu indico lerem este texto sobre sua origem, de que "Tradicional", ela não tem nada. Com exceção da Homeopatia, que surgiu no século 18, na Alemanha, até a MTC é recente. A grande maioria dessas práticas surgiu no movimento New Age, no final do século passado. 

Numa sentença dessa - dita (sempre) a mim por pessoas brancas, de classe média -, é interessante ver o racismo orientalista velado como validação dessas práticas: o oriental (ou qualquer um de qualquer parte do mundo que não seja Europa ou América do Norte) é um ser mágico, que vive acima da ciência e manipula o vento e toda a energia quântica do Universo. É realmente um saco, ou você é terrorista, ou você é um ser quântico. Eu me confundo de vez em quando... 

Esquecem-se que durante a pior parte da Idade Média, nos séculos de obscurantismo cristão, foram os árabes que fizeram grandes avanços na ciência e no pensamento científico. A ciência moderna só foi (e é) possível por causa dos avanços "orientais".

 

A medicina alternativa é interessante porque considera todo o indivíduo, e não a doença

Em toda prática alternativa repete-se que “a cura do indivíduo é mais importante do que a doença”. Enxergam-se as manifestações clínicas do paciente como um resultado da vida, do conjunto de emoções do indivíduo. Na homeopatia, entre colegas do meu curso (faço Farmácia na FCFRP-USP), essa visão "psicossocial" é geralmente usada como validação da prática, ainda que muitos deles não reconheçam a homeopatia como pseudociência.

Um médico que aplica alguma dessas práticas que listei tem sempre um comportamento mais empático do que os "médicos convencionais", já que procura entender todos os aspectos da vida do paciente para prescrever o melhor medicamento/prática.

Mas apoio emocional e psicológico é uma tarefa profissional, não algo a ser oferecido como um “extra” numa espécie de combo-placebo. Relativizar o papel de um profissional psicólogo é um sintoma da “coachização” das profissões. É um sintoma de que consolidamos (ou estamos consolidando) “metodologias freestyle” em detrimento desses profissionais.

 

Wasim A. P. Syed é divulgador científico pelos projetos Vidya Academics e União Pró-Vacina e graduando em Farmácia pela  FCFRP-USP

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