Estimando o número de infectados e o preço da imunidade de rebanho

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4 mai 2020
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O número de infectados por SARS-Cov-2 é extremamente difícil de ser quantificado, e a quantidade de pessoas infectadas por SARS-Cov-2 que sofrem de COVID-19, embora em tese mais fácil de detectar é, assim mesmo, desconhecida. É necessário esclarecer que existem muitas evidências que mostram que uma porcentagem alta, maior do que 70%, dos infectados por SARS-Cov-2 não desenvolve COVID-19. Esse universo, número de infectados e número de doentes, é essencial para definir estratégias racionais de isolamento social, e seu eventual relaxamento, durante uma pandemia.

O número de infectados pode ser estimado medindo a resposta imune em toda a população, ou usando amostragem populacional da resposta imune. Tal informação é crucial, uma vez que as mortes, as internações hospitalares por COVID-19 e os efeitos socioeconômicos da necessária paralisação de um número significativo de atividades continuam a desafiar a Humanidade.  

Uma desgraça que caracteriza a COVID-19 é a mortalidade dos infectados, em uma proporção que, independente do detalhe das muitas estimativas, ultrapassa as porcentagens das últimas pandemias de influenza. Como o número de infectados, bem como o número de doentes, é incerto, a porcentagem de letalidade, isto é, quantos dos infectados morrem quando adoecem, só pode ser estimada. As taxas de letalidade estimadas variam por uma ou duas ordens de grandeza, dependendo do lugar e das políticas de isolamento social, dentre outras variáveis. Contudo, não existem evidências consistentes que coloquem a letalidade abaixo de 0,5%.

Tomando esse número (0,5%) como verdadeiro, é possível fazer algumas estimativas a respeito do número de infectados. Vamos ver como. Para fazer essa estimativa, temos de usar outra suposição razoável, baseada em evidência, como a taxa de duplicação das infecções que, no Brasil, para a COVID-19, é de sete dias. Estima-se também que, em média, os pacientes que acabam perdendo a vida morrem 21 dias depois de serem infectados.

Comecemos então com um único paciente que morreu, após ser infectado três semanas antes. Se a taxa de letalidade é 0,5%, podemos afirmar que, no dia que esse paciente se infectou, 200 outras pessoas foram infectadas. Uma semana depois, se a taxa de duplicação da infeção é de sete dias, teremos 400 infectados e esse número se duplicará duas vezes até o paciente morrer. Assim, a partir de uma única morte, poderíamos estimar que 1600 pessoas estarão infectadas três semanas depois.

O fenômeno pode ser descrito na seguinte fórmula (o expoente “n/r” é o resultado da divisão do número de dias, entre infecção e morte, pela taxa de duplicação da infecção):

 

equação

 

Naturalmente, a taxa de mortalidade depende da qualidade da atenção hospitalar e da existência, por exemplo, de instalações com respiradores disponíveis. A taxa de duplicação das infecções também depende da atitude das autoridades locais e do comportamento da população diante da pandemia.

Verificar a validade de uma equação, como qualquer hipótese em ciência, requer, entre outras coisas, dados experimentais (observações) que possam ser descritos pela hipótese (equação) proposta. Isto é recomendável antes de começar a usar a hipótese (equação) para fazer predições.

Existem evidências que permitem testar a hipótese. Em trabalho recente verificou-se que no Condado de Santa Clara, na Califórnia, onde moram perto de 2 milhões de pessoas, deve haver entre 45 e 85 mil infectados e que 50 cidadãos desse lugar morreram nesse período.[i],[ii] A quantidade de infectados oficialmente declarados era 1.094, entre 20 e 60 vezes menor que o calculado pela amostragem. Se usarmos como exemplo os dados referentes à cidade norte-americana e a equação acima proposta tem-se que, para chegar a 50.000 casos de pessoas infectadas, é necessário multiplicar o número de mortes por um fator de 1000. Trabalhos que têm tratado da pandemia usando o mesmo raciocínio para estimar o número de infectados a partir das mortes por COVID-19 estimam que o fator de multiplicação a ser usado para calcular o número de infecções a partir do número de mortes varia entre 400 e 1600.[iii],[iv], [v]

Baseado nos dados de vítimas fatais no Brasil, que em 29 de abril chegavam a quase 5.500, é possível estimar, usando a equação descrita acima, que o número de infectados no país aproxima-se de seis milhões de cidadãos. A estimativa deveria estar no centro das avaliações das autoridades locais, estaduais e federais, quando medidas para relaxar ou endurecer seletivamente o isolamento social vigente são propostas.

A facilidade com que uma doença se espalha é medida usando o 'número de reprodução', R0, isto é, o número médio de pessoas que pegam a doença de uma única pessoa infectada. O R0 para a COVID-19 é estimado entre 2 e 3. A gripe, em comparação, tem um R0 de 1,3, enquanto o sarampo tem um R0 de 18.

O valor de R0 permite calcular a porcentagem mínima de indivíduos imunizados (por terem contraído a doença ou estarem vacinados) necessária para proteger toda a população. Esta condição, conhecida como limiar de imunidade de rebanho, é calculada por [1 - (1 / R0)]*100. Para o SARS-CoV-2, usando um valor de R0 de 2,5[vi], esta proporção é de 60%. Assim, 120 milhões de brasileiros teriam que estar imunes para alcançar uma imunidade de rebanho que protegesse toda a população.

Na ausência de uma vacina, alcançar estes números implicaria que, seguindo o raciocínio acima, teríamos no Brasil 120.000 mortos por COVID-19. Será que este é o cenário que o Presidente Bolsonaro, com seu discurso e atitudes concretas contra o isolamento social, quer para o país?

Hernan Chaimovich é professor Emérito do Instituto de Química da Universidade de São Paulo

 

 

NOTAS

 

[i] COVID-19 Antibody Seroprevalence in Santa Clara County, California, Eran Bendavid1, Bianca Mulaney2, Neeraj Sood3, Soleil Shah2, Emilia Ling2, Rebecca Bromley-Dulfano2, Cara Lai2, Zoe Weissberg2, Rodrigo Saavedra-Walker4, Jim Tedrow5, Dona Tversky6, Andrew Bogan7, Thomas Kupiec8, Daniel Eichner9, Ribhav Gupta10, John P.A. Ioannidis1,10, Jay Bhattacharya1

medRxiv preprint doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.14.20062463.this version posted April 17, 2020

 

[ii] Estes dados não estão totalmente aceitos, mas pode ser no detalhe.

https://www.the-scientist.com/news-opinion/how-not-to-do-an-antibody-survey-for-sars-cov-2-67488

 

[iii] Calculating Active COVID-19 Cases From Deaths, Predicting numbers through stats, Pratik Bhavsar , https://towardsdatascience.com/calculating-live-covid-19-cases-from-deaths-e70e5df45f60

[iv] Estimating the number of infected people by country based on the number of deaths and case fatality rate. by Joao B. Duarte

https://covid19dashboards.com/covid-infected/

 

[v] https://www.youtube.com/watch?v=mCa0JXEwDEk&t=4s

 

[vi] MarcoD'ArienzoaAngelaConigliob, Assessment of the SARS-CoV-2 basic reproduction number, R0, based on the early phase of COVID-19 outbreak in Italy, Biosafety and Health, 2020, https://doi.org/10.1016/j.bsheal.2020.03.004

 

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