Achismos de celebridades são perigo para a saúde

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29 jun 2019
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A boneca Emília, em ilustração de Andre Le Blanc
A boneca Emília, em ilustração de Andre Le Blanc

Toda vez que a boneca Emília, Marquesa de Rabicó, Condessa das Três Estrelinhas, abria sua “torneirinha de asneiras” tinha uma justificativa, imortalizada na obra de Monteiro Lobato: “Eu acho com base no meu direito de achar”. O mundo está cheio de achistas, gente que não passou por quatro anos de graduação, dois de mestrado, quatro de doutorado, mais pós-doutorado, mais livre-docência, mas se acha no direito e no dever de dar pitacos sobre saúde, higiene, sexo, política, futebol ou o que for. Pior ainda, quando o achista é celebridade e acha que deve compartilhar suas dicas de dieta, beleza e saúde com o comum dos mortais. E cada país tem a Gwyneth Paltrow que merece. Por aqui temos Bela Gil, por exemplo.

Depois de casar, descasar e ter dois filhos, Gwyneth, ganhadora de um Oscar de melhor atriz por Shakespeare Apaixonado, reduziu o número de aparições em palcos e telas para fundar a Goop, um site de e-commerceque, alvo de enxurradas de críticas, só faz crescer. 

Misturando feminismo, medicina oriental, meditação e pitadas de críticas à política ocidental, a quase-ex-atriz (cujo papel de maior destaque, em tempos recentes, foi o de “Pepper” Potts, namorada do Homem de Ferro de Robert Downey Jr., nos filmes da Marvel) vende de tudo, especialmente curas impossíveis e perigosas a preços extorsivos. Sua lista vai de equipamentos para realização de enemas de café (quente), passando por vaporização vaginal à base de ervas e, o mais famoso, o ovo de jade para suposto fortalecimento da musculatura pélvica.

A versão tupiniquim, Bela Gil, ainda não chega a tanto. Endossa marcas de produtos naturais que, aliás, é do que ela entende: cozinha vegana. No início de sua carreira na TV, Bela alegou ser nutricionista formada pelo Hunter College, Nova York, e que iria pedir validação de seu diploma aqui. 

Na verdade, o que ela fez no Hunter College foi um curso de culinária natural de um ano, e um curso de Nutrição e Ciência dos Alimentos, também de um ano

Isso talvez explique por que algumas recomendações de Bela ignoram por completo o real processo de digestão, tal como ocorre no corpo humano: por exemplo, a de comer clorofila “porque ela oxigena o sangue”. Mas como? A clorofila de brócolis, alfaces, chicórias, vagens e rúculas cairia incólume no sangue, onde continuaria a fazer fotossíntese, ainda que na ausência de luz? Eu, pelo menos, quando me olho no espelho, não vejo raízes, caule, folhas, flores e frutos e, portanto, deduzo que não sou vegetal. 

Também não vivo na água e não sou uma Elysia chlorotica, uma lesma do mar de 2 cm que, sim, incorpora os cloroplastos das algas que ingere, e é o único animal a fazer fotossíntese. Então, como, diabos!, a clorofila escapa da digestão e oxigena o sangue humano?

Nossa Gwyneth tropical também gosta de dar “dicas” para resolver problemas de saúde, em que poções, mezinhas e simpatias de avós e bisavós ganham versões New Age, geralmente envolvendo as expressões mágicas “toxina” e “produto tóxico”. 

Sua ideia mais recente foi recomendar três gotinhas de água oxigenada para curar otite. “Não serve para nada”, dispara Ricardo Bento, titular de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). “As nossas avós recomendavam óleo quente antigamente, mas tudo que ele fazia era acalmar a dor, tratar não. Você hoje pode dar um analgésico, fazer compressa para diminuir a dor até levar ao médico. Mas curar, não cura de jeito nenhum.” 

De acordo com ele, para fazer diagnóstico correto é preciso determinar se a otite é uma inflamação do ouvido externo ou médio e se ela é causa por vírus ou bactéria, para, então, ser medicada corretamente. “Não é uma doença grave, mas em casos raros, na verdade raríssimos, sem tratamento ela pode causar surdez e até abcesso cerebral, com sequelas neurológicas”, adverte.

De acordo com o especialista, o problema é que hoje todo mundo se acha no direito de falar o que bem entende sobre qualquer assunto em blogs, páginas na internet e redes sociais, inclusive recomendando medicamentos e tratamentos para lá de duvidosos. 

“Se você tem dúvidas na área de saúde, procure os sites de hospitais de renome ou de faculdades de medicina respeitadas ou ainda, de médicos especialistas. Um site correto e responsável vai lhe oferecer várias informações, de sintomas a possíveis causas da doença e inclusive orientar quanto à especialidade médica que você deve procurar. E com certeza, não vai haver ali nenhuma indicação de remédio,” alerta Bento.

A advertência vale para todo conteúdo sobre saúde postado por celebridades, sejam elas bem ou mal-intencionadas. Também para a oferta de curas milagrosas ou revolucionárias, terapias saídas da tradicional sabedoria indiana, maia, inca “e só agora reveladas”. Também é importante ficar de olho para a mais antiga e eficaz das estratégias de marketing do setor “alternativo”: “a indústria farmacêutica não quer que você saiba, mas...” 

Desconfie. Desconfie sempre. Procure informação em sites de hospitais, universidades e cuidado com blogs e sites que pontificam sobre saúde sem oferecer referências claras. Muitas dessas celebridades da saúde “alternativa” tendem a alegar que leram “vários artigos” para chegar a suas conclusões – mas sem citá-los. 

Dificilmente são artigos científicos publicados em revistas especializadas e com peer review, processo pelo qual especialistas conferem o trabalho uns dos outros: geralmente são textos de blogs e sites, criando um círculo vicioso em que qualquer “achista” parece ter suas ideias referendadas e comprovadas por várias outras pessoas tão desinformadas quanto ele.

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética,  Bioquímica e Câncer, entre outros.

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