Frankenstein, seus mitos e realidades

Apocalipse Now
23 jul 2021
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John Forster, 26 anos, condenado por homicídio, foi enforcado na prisão de Newgate, em Londres, no dia 17 de janeiro de 1803. Consumada a execução, o corpo ficou exposto aos elementos, no pátio do presídio, numa temperatura ambiente de -1ºC, por uma hora; depois, foi recolhido e encaminhado para o Real Colégio de Cirurgiões da capital britânica.

Ali, aguardavam-no uma audiência de eminentes homens de ciência, incluindo o mestre de cerimônias da ocasião, o físico italiano Giovanni (“John”) Aldini (1756-1836), sobrinho do grande médico Luigi Galvani (1737-1798), e três pilhas elétricas. Formadas, cada uma, por quarenta placas de zinco e quarenta de cobre.

Aldini depois descreveu os experimentos conduzidos num apêndice a seu livro “An Account of the Late Improvements in Galvanism”, do mesmo ano. Exemplo: “um arco sendo aplicado à boca, e outro à orelha (…) a mandíbula começou a tremer, os músculos adjacentes contorceram-se horrivelmente e o olho esquerdo de fato abriu-se”. Em outro experimento, onde a aplicação de corrente elétrica à boca e ao nariz foi precedida pelo uso de um “álcali volátil”, “as convulsões (…) estenderam-se dos músculos da cabeça, rosto e pescoço, até o deltoide (…) a vitalidade, talvez, poderia ter sido restaurada”.

Nessa época, Mary Wollstonecraft Shelley (1797-1851), que em 1816 iniciaria a escrita do romance “Frankenstein, ou o Moderno Prometeu”, tinha seis anos de idade.

 

 

Mito moderno

Leslie S. Klinger, que em 2017 produziu uma edição anotada e comentada do romance, refere-se a Frankenstein como o “primeiro mito da modernidade”, ecoando observações feitas pelo crítico literário Nicholas Marsh e pela autora Susan Tyler Hitchcock. Mitos, quando não são interpretados literalmente, oferecem balizas que guiam o modo como determinadas comunidades olham e pensam sobre aspectos do mundo. No caso do mito de Frankenstein, essas balizas dizem respeito, é claro, à ciência e à tecnologia.

Cada vez que uma nova descoberta ou aplicação surge — principalmente nas áreas biomédica e nuclear, mas não só — a “ameaça” do monstro descontrolado que se volta contra o próprio criador ressurge. Toda a retórica contrária ao uso de organismos geneticamente modificados (OGMs), por exemplo, tem o mito como fulcro, e muitas das insinuações disseminadas online, pondo em dúvida a segurança das vacinas para COVID-19, apropriam-se do mesmo tipo de sentimento. Até o debate sobre a origem imediata do vírus — se ele teria chegado à população de Wuhan por vias naturais ou por uma falha de biossegurança laboratorial — são contaminados pelo mito frankensteiniano.

Curiosamente, essa temática de vingança da Natureza (ou divina) contra a violação de suas leis e segredos está bem menos presente no romance do que nas adaptações cinematográficas, como a clássica dirigida por James Whale (1889-1957), estrelada por Boris Karloff (1887-1969) e que completa 90 anos agora em novembro.

O livro de Mary Shelley diz menos sobre os supostos perigos do conhecimento (e de seu uso) e muito mais sobre os riscos da obsessão e, fundamentalmente, da negligência para com aquilo que se cria. Victor Frankenstein sofre menos por ser um cientista ambicioso e muito mais por covardia e por permitir que essa ambição o afaste de suas obrigações para com a família — incluindo, implicitamente, do monstro que seu engenho produz.

 

Menina triste

A crítica literária é praticamente unânime em apontar o paralelo entre a ferida e queixa fundamental do monstro — ter sido abandonado à própria sorte pelo criador — a uma dor pessoal da autora, que se viu preterida e posta de lado pelo pai, o filósofo anarquista William Godwin (1756-1836), pai do pensamento radical de esquerda na Inglaterra, principalmente depois que se casou com a segunda mulher, Mary Jane Clairmont (1768-1841).

Como escreve a professora de Literatura Inglesa Anne K. Mellor na biografia “Mary Shelley: Her Life, Her Fiction, Her Monsters”, “por causa de suas circunstâncias históricas, Mary Shelley foi privada, por toda sua infância, de uma família nuclear amorosa. Ela buscou desesperadamente criar tal família, tanto na vida quanto na ficção. Em Frankenstein, analisa as consequências desastrosas da ausência de um genitor carinhoso ou de apoio familiar”.

A própria interpretação mais comum da frase “Moderno Prometeu”, no título original do romance, de que seria uma referência ao roubo do fogo (metáfora para conhecimento) dos deuses pelo titã Prometeu, e sua subsequente punição, parece equivocada. Klinger aponta que, um ano antes de começar a escrever “Frankenstein”, Mary Shelley estava lendo as “Metamorfoses”, do poeta romano Ovídio (43 AEC-18 EC), onde o mito de Prometeu aparece da seguinte forma:

“Talvez a Terra, recém-formada e recentemente separada do éter celeste, preservasse algumas sementes de seu elemento-irmão — Terra, que Prometeu, o filho de Japeto, aspergiu com pingos de chuva e moldou à semelhança dos deuses que governam o Universo”.

Nessa versão, portanto, Prometeu não é o ladrão dos segredos dos deuses, mas o criador da Humanidade — exatamente o que Frankenstein propunha-se a ser: o pai de uma nova raça humana.

 

O químico

Não que a ciência não seja importante no livro. Mary Shelley anota em seu diário, em 1816, mesmo ano em que o romance começou a ser escrito, que estava lendo sobre ciência de ponta: “Li a introdução da `Química’ de Sir H. Davy”. A referência é a Sir Humphry Davy (1778-1829), um dos grandes químicos da época, creditado como criador do campo da eletroquímica — com o uso da eletricidade, conseguiu isolar os elementos químicos sódio, cálcio e potássio pela primeira vez.

Seu livro de 1812, “Elements of Chemical Philosophy”, e um panfleto anterior, “A Discourse, Introductory to A Course of Lectures on Chemistry”, de 1802, são citados como fontes possíveis de Mary Shelley, tanto para as falas de um dos personagens, o professor Waldman, que instrui o jovem Victor Frankenstein nos caminhos da ciência “moderna” (circa 1790), quanto para a própria visão de ciência presente no livro. Davy era um entusiasta do potencial do cientista em não apenas entender o mundo, mas também em controlá-lo. No “Discourse”, ele escreve:

“[A] Ciência deu a ele [ao químico] um entendimento das diferentes partes do mundo exterior; mais do que isso, dotou-o de poderes que podem quase ser chamados de criativos; que lhe permitem modificar e alterar os seres ao seu redor, e por meio de experimentos interrogar, com poder, a natureza. Não somente como um estudioso, passivo e que apenas busca compreender as operações naturais, mas como um mestre, ativo com seus próprios instrumentos”.

A obsessão em controlar a natureza levará Frankenstein ao pecado de negligenciar suas responsabilidades humanas, e Mary Shelley, pelas mãos do monstro, castiga-o mais por isso do que por “roubar o fogo dos céus”. A ideia de que obsessão e negligência são os verdadeiros crimes do protagonista fica mais saliente quanto levamos em conta a narrativa que serve de moldura para a tragédia de Victor Frankenstein, a da expedição fictícia de Robert Walton, outro obcecado, em busca do Polo Norte. As últimas palavras de Frankenstein para o navegante são reveladoras:

“Adeus, Walton! Busque alegria na tranquilidade, evite a ambição, mesmo se for apenas a ambição, aparentemente simples, de distinguir-se nas ciências e descobertas”.

 

 

Ciência

Existem quatro versões do romance “Frankenstein”: o texto inicial produzido por Mary Shelley em 1816, reconstituído a partir de seus cadernos particulares e publicado apenas em 2018; a primeira edição, de 1818, que conta com interferências substanciais feitas pelo poeta Percy Bysshe Shelley (1792-1822), marido de Mary; a segunda edição de 1823, baseada na de 1818 mas com revisões feitas pelo pai de Mary, William Godwin, para aproveitar o imenso sucesso das adaptações do livro para o teatro; e a terceira edição, de 1831, revisada por Mary a partir do texto de 1823, com um capítulo extra e longos trechos rescritos.  

Anne K. Mellor aponta que essa última edição diverge, filosoficamente, dos textos anteriores, tirando ênfase do livre-arbítrio e da responsabilidade individual e lançando muito do peso da tragédia de Victor Frankenstein sobre o “destino”. Mellor supõe que a mudança reflete uma alteração no modo de ver a vida de Mary Shelley, que nas décadas entre primeira e terceira edições sofrera uma série de perdas pessoais, tendo assistido à morte de três de seus filhos, ainda na infância, e à do marido, além de sofrer um aborto espontâneo seguido de uma hemorragia que quase a matara.

A maioria das edições do livro publicadas ao longo do século passado, incluindo as traduções para o português, tendeu a seguir o texto final de 1831, mas a edição de 1818 vem sendo cada vez mais valorizada. Críticos e historiadores passaram a vê-la como mais próxima da “verdade” emocional e intelectual da autora, no momento em que a história foi concebida.

Mas, e o mito? Devemos mesmo temer o conhecimento, desconfiar de quem o produz, curvar-nos obedientes às leis da natureza?

É razoável supor que boa parte do senso de abandono e solidão da jovem Mary Shelley, que acabou substanciada no “Moderno Prometeu”, pode ser atribuída à morte de sua mãe, a filósofa feminista Mary Wollstonecraft (1759-1797), poucos dias após dar à luz. Wollstonecraft morreu de febre puerperal. Como a placenta não saiu junto com o bebê Mary, um médico usou as mãos para puxar o material, em pedaços, para fora.

O ano da primeira publicação de “Frankenstein”, 1818, também foi o ano de nascimento de Ignaz Semmelweis (1818-1865), médico húngaro que viria a demonstrar que a maioria dos casos de febre puerperal podem ser evitados caso o médico lave as mãos antes de tocar a parturiente.

A criação do monstro de Frankenstein, então, talvez possa ser atribuída não tanto a um médico fictício que quis saber muito, mas mais a uma medicina real que ainda não sabia o bastante.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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