Teorias de conspiração seguem o ET de Varginha, 25 anos depois

Apocalipse Now
23 jan 2021
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ET de Varginha

Quando trabalhei na Unicamp, entre 2011 e 2017, eram recorrentes as consultas à assessoria de comunicação da universidade sobre o “ET de Varginha”. Segundo o folclore construído em torno do assunto, o cadáver de um ser extraterrestre, capturado em 20 de janeiro de 1996 na cidade mineira de Varginha pelo Exército, teria sido levado à Universidade Estadual de Campinas para ser submetido a exames. Dependendo da versão que nos chegava, a autópsia teria ocorrido numa ”sala secreta” do Instituto de Química, ou numa “instalação subterrânea” que se estenderia da Faculdade de Medicina até o Instituto de Biologia. Os trabalhos teriam sido comandados pelo médico legista Fortunato Badan Palhares, que sempre negou o caso.

Essa versão do subterrâneo era a minha favorita: a Medicina e a Biologia ficam em pontos diametralmente opostos no campus, e um túnel entre elas provavelmente precisaria de um metrô para ser percorrido. Se houvesse algo assim na Unicamp, os estudantes já teriam descoberto e estariam usando (o trânsito no campus é horrível).

Nesta última semana, em meio às emoções trazidas pelas mentiras deslavadas do ministro da Saúde, sobre “nunca ter” recomendado cloroquina, e a posse de Joe Biden nos Estados Unidos, lembrei-me dos colegas da Unicamp que devem ter sido atolados por solicitações trazidas pela efeméride ufológica: os 25 anos do “Evento de Varginha”.

 

Os (poucos) fatos

O núcleo do “Caso Varginha” foi o avistamento, por três jovens — Kátia, então com 21 anos, Valquíria, 14, e Liliane, 16 — de algo, “nem homem, nem animal”, agachado junto ao muro de um terreno vazio. Era 20 de janeiro de 1996, pouco depois das 15h.

Esse acontecimento central acabou conectado, por especulações de ufológos e pela engrenagem midiática, a uma série de outros eventos que se estende do dia 13 de janeiro (noite em que um casal de moradores de uma propriedade rural diz ter visto algo estranho no céu) a 15 de fevereiro, quando um policial que teria entrado em contato com um alienígena morreu vítima de infecção hospitalar.

Há ainda relatos que descrevem uma movimentação de caminhões do Exército por Varginha ao longo do fatídico 20 de janeiro (uma investigação militar põe esses deslocamentos no dia 25), alguma atividade do Corpo de Bombeiros local pela manhã e uma forte tempestade de granizo que atingiu a cidade, na mesma data, à tarde.

O que se usa para unir esses pontos disparatados, diante da total e completa ausência de qualquer tipo de evidência física, é uma série de relatos testemunhais, que em geral seguem o padrão: as testemunhas que assinam embaixo do que dizem afirmam que não houve nada excepcional, que tudo não passa de confusão, mistificação, exageros e mal entendidos. Já as que supostamente teriam visto, constatado ou participado de interações diretas com extraterrestres, ou de manobras militares escusas, mantêm-se, quase todas, anônimas. A principal exceção à regra são as três jovens que descreveram o ser “nem homem, nem animal”.

Entre esses extremos há as testemunhas que se identificam, mas que têm pouco mais do que lendas e especulações a oferecer: coisas que teriam acontecido com um amigo de um amigo, ou vislumbres fugidios de algo com olhos vermelhos numa noite escura, uma correria num corredor de hospital.

 

Investigação militar

Algumas dessas testemunhas anônimas teriam dito a ufólogos que, cerca de uma hora antes do encontro fatídico das três jovens, militares capturaram, numa mata da região, um par de animais não-identificados que foram acondicionados em sacos de campanha. A captura teria sido precedida por pelo menos dois tiros de fuzil, de acordo com o livro “Varginha: Toda a Verdade Revelada”, de Marco Antônio Petit.

Além disso, a morte, em fevereiro de 1996, de um jovem soldado da Polícia Militar, num hospital de Varginha, vítima de infecção hospitalar, acabou vinculada ao caso: surgiram boatos de que ele teria participado da captura de um alienígena que aparecera logo depois da tempestade de granizo de 20 de janeiro. Segundo testemunhas anônimas, o ET teria causado um ferimento no policial, a ilação sendo de que sua morte (semanas mais tarde!) foi provocada por uma infestação de microrganismos extraterrestres.

A Escola de Sargentos das Armas do Exército (EsSA), baseada em Três Corações (MG), a cerca de 30 km de Varginha, conduziu duas investigações sobre o caso — uma sindicância em 1996 e um Inquérito Policial Militar (IPM) em 1997 —, já que militares ligados à escola vinham sendo citados como envolvidos na suposta captura e acobertamento do “ET de Varginha”.

As apurações determinaram que caminhões da EsSA estiveram na cidade em 25 de janeiro, para passar por manutenção — a concessionária do fabricante estava localizada lá —, e que o ser misterioso visto pelas jovens seria um morador da cidade, conhecido como “Mudinho” ou “Luizinho”, que sofre de problemas mentais e tem o hábito de andar agachado pelas ruas, coletando bitucas de cigarro e pequenos objetos. Luizinho mora (ou morava) em frente ao terreno onde houve o avistamento da “criatura”.

Sobre o falecimento do policial, o IPM anexa um depoimento do comandante do Batalhão da Polícia Militar em que o jovem atuava, afirmando a morte por infecção hospitalar após uma cirurgia, e cópia do laudo de necrópsia no mesmo sentido. Especulações sobre o falecimento do soldado marcam o clímax do livro “UFO Crash in Brazil”, do americano Roger Leir (1935-2014), médico que ficou famoso em círculos ufológicos por realizar cirurgias para remover “implantes alienígenas”.

 

Cultura

No início deste século, em fevereiro de 2001, o Comando da Aeronáutica  publicou um resumo estatístico dos casos envolvendo óvnis que haviam chegado ao conhecimento da corporação, entre a década de 1950 e o ano 2000. A moda ufológica do século 20 teve início com a observação de “discos voadores” pelo piloto Kenneth Arnold (1915-1984) em 1947, nos Estados Unidos, e esquentou no Brasil a partir de 1952, graças a uma fraude fotográfica perpetrada pela revista O Cruzeiro.

A estatística sobre óvnis do Comando da Aeronáutica contém dois picos pronunciados: nos anos de 1977-78 (onde concentram-se 22,3% de todos os casos registrados entre 1954 e 2000) e nos de 1996-97 (18,27%). Juntos, os dois biênios somam mais de 40% do total de casos anotados em 46 anos.

Curiosamente, em 1977 estrearam nos cinemas Guerra nas Estrelas e Contatos Imediatos de 3º Grau; já os anos 96-97 viram explodir a popularidade da série de TV Arquivo X no Brasil, onde vinha sendo exibida desde 1994, outro ano que concentrou uma grande proporção de avistamentos (6,5%).

O ano de 1996 também assistiu à estreia de Independence Day, fantasia espacial em que o presidente dos Estados Unidos (pré-Donald Trump) salva a Humanidade de uma invasão por alienígenas, que nos atacam a bordo de discos voadores gigantes. Este filme foi um tremendo sucesso de público, tornando-se o mais assistido do ano e a sexta maior bilheteria de toda a década de 90. A película estreou no Brasil em agosto, meses depois do “caso” Varginha, mas é um bom indicador do clima cultural prevalente na época. E os dois fenômenos retroalimentaram-se: foi em 18 de agosto que a Folha de S. Paulo publicou um especial de duas páginas sobre o boom do “Turismo do ET” na cidade de Varginha. O conjunto de textos incluía comentários sobre o filme.

Para completar, o infame “documentário” falsificado a respeito de uma autópsia de alienígena havia sido promovido pela mídia internacional — incluindo, aqui no Brasil, o jornal Folha de S. Paulo e o programa Fantástico, da Rede Globo — ao longo do ano de 1995.

ET de Varginha

Foi nesse ambiente saturado por ideações extraterrestres que se ferveu o caldo onde foram cozidas as diversas interpretações dos eventos — reais, supostos ou imaginários — que tiveram lugar no período de 13 de janeiro a 15 de fevereiro em Varginha e arredores.

Sendo a natureza humana o que é, nos dias, meses e anos seguintes ao encontro das jovens com a “criatura” agachada no muro, a presença constante de ufólogos ávidos por segredos, insinuações ou boas histórias envolvendo o Exército ou ETs pode ter levado muitos moradores a reinterpretar eventos pouco usuais ou meramente curiosos sob um prisma extraterrestre. O efeito Adoniran Barbosa — tendência de inventar ou enfeitar histórias para agradar ou mesmo zombar do entrevistador — não deve ser subestimado.

 

O sabor da conspiração

A justaposição entre uma versão prosaica baseada na palavra de pessoas com nome, sobrenome e em documentos publicados e uma outra, fantástica, quase toda feita de alegações anônimas, boatos e saltos de imaginação especulativa é, claro, farinha para a farofa das teorias de conspiração.

A própria força da refutação é vista como produto de um grande poder manipulador, assim como a insistência dos denunciantes no anonimato. Mas, saindo dessa lógica invertida onde ausência de evidência é evidência de presença, nada mais resta. Fontes secretas são úteis na medida em que apontam o caminho para se chegar à evidência concreta. Nesse caso, deseja-se fazer com que as fontes secretas sejam a evidência concreta. O que torna o caso todo insustentável.

Os que pretendem manter o “mistério” vivo acabam tendo de fingir que o IPM não existe, ou reforçar seu caso apontando para evidência negativa — supostas inconsistências entre certos relatos e eventos e a versão oficial. Por exemplo, a data da manutenção dos caminhões do Exército: 25 de janeiro, enquanto que testemunhas dizem que os caminhões estavam na cidade cedo dia 20. Mas eventuais fraquezas do relato apurado pelo IPM não se refletem em força da hipótese alienígena. Trata-se de uma falsa dicotomia.

Para usar um exemplo internacional, há alguns anos o governo dos Estados Unidos finalmente admitiu que havia usado a famosa  Área 51 para pesquisar e testar tecnologias secretas — algo de que ufólogos suspeitavam há tempos — mas não naves alienígenas resgatadas, e sim coisas de origem bem terrestre, como o avião de espionagem U2 e jatos soviéticos capturados.

A questão de o quê as três jovens realmente viram em 20 de janeiro de 1996 provavelmente jamais será respondida com certeza. E não porque seja um grande mistério em si, mas apenas porque a maioria das coisas da vida são assim, fugidias — quando você acha uma moeda perdida numa calçada movimentada, é virtualmente impossível saber quem a deixou cair. A hipótese Luizinho/Mudinho é melhor do que a extraterrestre, entre outros motivos, porque há evidências físicas claras de que Luizinho/Mudinho pelo menos existe.

É muito fácil ver estes 25 anos do “Caso Varginha” como uma curiosidade folclórica ou arapuca turística (como a ex-presidente Dilma Rousseff de certa forma fez, ao manifestar “o maior respeito pelo ET”), mas, se os últimos anos ensinaram alguma coisa, foi que fantasias conspiracionistas que fermentam em pequenos grupos, não importa o quanto pareçam absurdas para os formadores de opinião, têm o potencial de desabrochar em movimentos sociais de caráter obscurantista e forte impacto político.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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