Crença e política

Apocalipse Now
10 jan 2021
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No meio século em que tenho habitado este globo de insensatos, pouca coisa já me causou mais irritação do que a repetição incessante do velho par de platitudes bem-intencionadas “é preciso acreditar em algo” / “é preciso perseguir seu sonho”. Sempre que ouço essa conversinha, logo imagino uma lista de pessoas que fizeram exatamente isso – Adolf Hitler no topo. “Acreditar” e “sonhar” não são valores em si, dependem daquilo em que se acredita, ou com o que se sonha.

O mundo narcisista construído pela publicidade sussurra em nossos ouvidos que todos os “sonhos” têm valor equivalente, que o que importa é maximizar o senso de “realização pessoal”. Se isso implica abrir uma pousada na praia, comprar um carro esporte, erradicar a pólio ou garantir a supremacia da raça-mestra, tanto faz.

A coisa piora ainda mais quando o assunto é crença. A turba de paspalhos que tentou impedir a confirmação da vitória de Joe Biden sobre Donald Trump pelo Congresso americano, na última semana, não só nutria um sonho como acreditava, e agiu de acordo com a força de seus sonhos e de suas convicções. Em que acreditavam os arruaceiros? Num verdadeiro pot-pourri de teorias de conspiração e fantasias apocalípticas.

Podemos considerar suas crenças irracionais, porque baseadas em distorções e mentiras, mas não suas ações: uma das definições mais comuns de racionalidade é a disposição de agir de modo consistente com aquilo em que se acredita.

Como escreveu há mais de cem anos o filósofo Charles Sanders Peirce (1839-1914), “crença, afirmação ou juízo significa asseverar a proposição e estar preparado para agir com base nela”. Se a “proposição” é a de que a eleição foi roubada, o Partido Democrata é composto por répteis pedófilos do espaço e Donald Trump é o messias, pôr um chapéu de búfalo e invadir o Capitólio torna-se algo perfeitamente racional.

 

A barca de Clifford

Ética da Crença é o título de um ensaio escrito no século 19 pelo filósofo e matemático britânico William Clifford (1845-879), em que ele afirma que "é errado, sempre e em qualquer lugar, acreditar em alguma coisa com base em evidência insuficiente". Clifford usa, para expor a ideia, o que poderíamos chamar de “a parábola (por assim dizer) do barqueiro devoto”: um homem que acredita, com tamanha fé, que Deus protege seu barco que se recusa a realizar os trabalhos mínimos de manutenção (afinal, o que é o talento de um grupo de trabalhadores diante da mão protetora da Onipotência?). Mas um belo dia o barco afunda, matando todos a bordo.

O senso-comum diria que a culpa foi da negligência do barqueiro, mas Clifford insiste que a culpa foi da crença: o barqueiro acreditava, do fundo do coração, que Deus protegia seu barco, e sua negligência foi apenas uma consequência lógica disso. Ele só foi negligente porque foi coerente com sua fé. A tragédia representou o fim inevitável de uma cadeia lógica iniciada pela crença sem base em evidências.

Ética da Crença atraiu uma crítica furiosa de outro filósofo, o americano William James (1842-1910) – não só um dos pais da psicologia moderna, mas também um ardente patrocinador de estudos de mediunidade: James, além de ter sido membro da Sociedade de Pesquisa Psíquica, que investigava fenômenos paranormais, caiu sob o encanto da médium Leonora Piper (1857-1950), que para ele seria o “cisne negro” – a exceção que desprovaria a regra de que toda suposta comunicação com os mortos representa engano ou fraude.

Outros investigadores, no entanto, foram bem menos generosos: a psicóloga Amy Tanner (1870-1956), em seu livro “Studies of Spiritism”, mostra-se muito pouco impressionada com os “poderes” de Piper. Outro psicólogo da época, Edmund Smith Conklin (1884-1942), também concluiu que os transes de Piper eram psicológicos, não paranormais. Quase cem anos depois dos dias de glória de Piper, em 1992, Martin Gardner (1914-2010) definiu-a como uma “charlatã esperta”.

Ao tentar refutar Clifford, James ponderou, no ensaio Vontade de Acreditar, que cedo ou tarde todo mundo é obrigado a agir com base em crenças sustentadas em evidência insuficiente – a dar “saltos de fé”. Toda vez que abre uma porta e entra numa sala, por exemplo, você age com base na crença de que não há um leão faminto do outro lado, mas qual sua evidência para isso?

James aponta a existência de “escolhas genuínas”, que define como “vivas”, “forçosas” e “momentosas”, escolhas em que seria legítimo dar o tal salto. Uma opção é “viva” se tem apelo subjetivo para quem a faz – diz respeito a algo que a pessoa considera importante; é “forçosa” se a pessoa não tem como deixar de se comprometer na questão: tanto acreditar quanto não acreditar implicam uma tomada de posição; e é “momentosa” se a tomada de posição envolve consequências graves.

 

Religião e política

O debate Clifford-James geralmente é encarado como um problema em filosofia da religião. O britânico, afinal, propõe uma inversão do valor moral que religiões como o cristianismo e o islã põem na crença, mais especificamente, na fé: o que é uma virtude para os religiosos é, para ele, um crime.

A resposta do americano, por sua vez, é feita sob medida para autorizar a crença no sobrenatural: crer ou não em vida após a morte, por exemplo, é uma séria candidata a opção “viva” (já que interessa a toda a Humanidade), “forçosa” (acreditar ou não é uma tomada de posição) e “momentosa” (já que pode afetar o destino eterno da personalidade).

A resposta do americano não chega a restaurar o status da fé. O que ele propõe é uma espécie de atitude de boa-vontade: dar o salto e ver como as coisas se desenrolam a partir daí. Esse é um sentido de “crença” menos radical que o de Pierce, e talvez James considerasse essa postura consistente com sua atitude diante das comunicações mediúnicas de Leonora Piper.

No mundo atual, esse debate filosófico-religioso ganha caráter prático e político: para os invasores do capitólio, acreditar na vitória de Trump ou na conspiração QAnon representa um par de "escolhas genuínas” no sentido de James: crer ou não, mesmo com base em evidência insuficiente, que os Estados Unidos são governados por uma conspiração de pedófilos pode parecer – certamente parece – uma opção viva, forçosa e momentosa para muita gente.

Esse movimento de materialização da metafísica já vem sendo notado há alguns séculos, e há observadores que o consideram uma espécie de efeito colateral do Iluminismo. Quando a ciência explicita o poder do mundo material, as forças sobrenaturais buscam materializar-se, para não perder legitimidade: anjos e demônios viram discos voadores e alienígenas, a fé que cura migra das relíquias de santos para pílulas de açúcar, a alma começa a aparecer em fotografias.

Já vimos essa materialização da metafísica acontecer por meio da política antes – no início do século passado, na eclosão dos grandes totalitarismos. Não é porque os deploráveis de Washington cortam uma figura ridícula que deveríamos ignorar o processo que representam. Quando crenças têm consequências diretamente observáveis e comandam atitudes que afetam vidas, o imperativo de Clifford deveria reinar supremo.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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