A palavra mágica de James Randi

Apocalipse Now
7 nov 2020
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Baralho Randi

Já faz algumas semanas que o mágico James The Amazing Randi morreu, e eu ainda não havia conseguido articular aqui um relato, com um mínimo de coerência, sobre o impacto que ele teve em minha vida. Quem acompanha este espaço com frequência talvez já esteja cansado – entediado, mesmo – de me ouvir repetindo que o jornalismo “clássico”, tal como praticado no Hemisfério Ocidental desde que o New York Times percebeu, lá no século 19, que era melhor ser levado a sério por todo mundo, e não só pelos membros deste ou daquele fandom político, sofre com fragilidades estruturais que canalhas, charlatões, populistas e golpistas exploram com gosto, gozo e impunidade.

Foi a leitura de Flim-Flam!, a obra seminal de Randi sobre ceticismo, fraudes e crendices, que me pôs na trilha que acabou desembocando na crítica que faço a meu ofício – e, por tabela, nos rumos assumidos ao longo dos últimos dez anos de minha vida profissional, culminando na atividade atual. Para ser mais específico, tudo começou com a leitura de um parágrafo do capítulo de James Randi sobre ufologia:

“Entrar no negócio dos óvnis é bem fácil. Um pequeno estudo dos procedimentos para atrair a mídia, e adotar o estilo dos ‘especialistas’ consagrados em óvnis, servirá muito bem. É preciso estar preparado para aceitar tudo facilmente, sem o menor esforço para conferir os fatos, e as histórias maravilhosas resultantes serão exageradas e amplificadas pela mídia, automaticamente. De fato, jornalismo mal feito é praticamente a única razão pela qual a crença em óvnis persiste”.

“A única razão pela qual a crença em óvnis persiste”. Perdi algumas noites em claro ruminando que coisas mais, em termos de crenças injustificadas, falsidades evidentes e mentiras deslavadas – para além dos homenzinhos verdes e suas naves circulares – só continuam a ser levadas a sério pelo público por causa de “jornalismo mal feito”. E minha insônia foi agravada por uma outra suspeita: a de que não é só o “jornalismo mal feito” que mantém bobagens vivas e circulando. A incômoda desconfiança de que aquilo que poderíamos chamar de “jornalismo competente” também tem uma boa parcela de culpa.

 

História de disco voador

Anos antes de eu achar o livro de Randi, um jornal da cidade onde minha família mora até hoje havia publicado a notícia de que um grupo de pessoas encontrara sinais do pouso de um disco voador numa propriedade rural. Dias depois, o mesmo jornal trazia um desmentido meio envergonhado, no qual uma tropa de escoteiros informava que o círculo de grama queimada – a tal "marca" do óvni – era, apenas, o vestígio de uma fogueira deles.

A coisa toda me incomodara porque, ao menos numa análise superficial, o jornal não tinha feito nada de errado: as testemunhas do "óvni" haviam sido escrupulosamente ouvidas e suas declarações, reproduzidas sem distorção; uma "autoridade" (um ufólogo...) tinha sido também ouvida, e corretamente citada; por fim, quando os escoteiros apareceram, foi-lhes dada voz.

Mas este era apenas o aspecto superficial da questão: porque, no fundo e de modo inegável, o jornal havia, ainda que por um breve intervalo de menos de uma semana, induzido seus leitores a engolir a enorme bobagem de que uma mera fogueira de escoteiros era, na verdade, o rastro de uma nave espacial.

A leitura de Flim-Flam! trouxe de volta – e amplificou – o desconforto que eu havia sentido no tempo da fogueira dos escoteiros, a sensação azeda de “está tudo certo mas parece errado ou está tudo errado mas parece certo”.

Além de me fazer relembrar a aventura do disco voador, o livro de Randi reavivou meu desconforto com o padrão básico da mídia brasileira para lidar com “controvérsias” e “polêmicas”. Era a virada do século, e o Sudário de Turim estava em exposição, sendo tratado como “mistério” por boa parte da grande imprensa, a despeito de ser caso resolvido pela ciência desde a década de 80.

Outras coisas também foram se acumulando em minha lista de exemplos de “jornalismo certo com informação errada”: reportagens de saúde sobre o “sucesso” de tratamentos homeopáticos, perfis de famílias felizes que se recusam a vacinar os filhos, entrevistas “polêmicas” em que especialistas isolados punham em questão consensos científicos decisivos como o do aquecimento global, a segurança das vacinas ou os males do fumo passivo.

Quando questionava essas opções, diziam-me que era errado “calar dissidências”, que a imprensa deveria estra aberta às “vozes legítimas da sociedade” para que “o leitor pudesse julgar”.

Sem entrar no mérito de quem decide se esta ou aquela voz é “legítima” (muitas vezes, é o colega do clube de uísque-e-charuto do dono do jornal), este princípio acaba destilando-se na seguinte metodologia implícita: o que torna uma ideia, opinião ou alegação digna de espaço na mídia é o número de pessoas que acredita nela, ou o grau de influência social de quem a defende, não seu mérito intrínseco ou sua correspondência com os fatos.

Essa metodologia, por sua vez, traz o seguinte corolário: a partir de um certo nível de apoio social ou econômico, nenhuma ideia ou alegação é falsa, idiota ou mentirosa; é, no máximo, “polêmica” ou “controversa”.

 

Falas ou fatos?

Tomados juntos, os dois princípios levam a uma conclusão fantástica: jornalista não precisa se preocupar em descobrir a verdade. Basta registrar crenças que tenham alguma ressonância na sociedade e lavar as mãos – jornalismo à Pôncio Pilatos. Se um grupo influente de juristas, psicanalistas ou economistas resolver abraçar o terraplanismo, vamos dar “outro lado” para terraplanistas nas matérias de astronomia. E convidar o presidente da Sociedade da Terra Plana para assinar coluna semanal.

Entre 2008 e 2009 minha inconformidade com essa situação estava desembocando numa grave crise existencial. Em 2010, perdi o emprego e, em 2011, fui escrever livros de divulgação científica.

O primeiro, O Livro dos Milagres, ficou ponto em menos de três meses: era a energia de uma década de fúria represada, saindo tudo de uma vez. Tanto que o caso do sudário foi uma espécie de núcleo em torno do qual a obra se construiu. Ele marca meu primeiro gesto mais concreto contra o que em inglês se chama de mystery-mongering, algo que se traduz, mais ou menos, como “mercadejo de mistérios”, a promoção de “casos misteriosos” fajutos, “enigmas” que ou já foram resolvidos, ou nunca existiram.

Dali, meio que por osmose, acabei mergulhando no universo do “mercadejo de controvérsias” – aquecimento global e quejandos. Com a crise da fosfoetanolamina sintética, a partir de 2015, meu desespero da capacidade do jornalismo clássico, onde todos os especialistas são criados iguais e declarações entre aspas valem mais do que fatos, de informar corretamente a população sobre temas cruciais de ciência e saúde atingiu níveis... bem, desesperadores.

 

A vida como ela é

Mas foi nessa época que tive minhas primeiras colaborações com Natalia Pasternak, e em seguida veio outra demissão e o TEDx USP de 2017. Um ano depois, entrava no ar esta Revista Questão de Ciência. E tudo isso começou com um incômodo provocado por uma linha no final de um parágrafo de um livro de James Randi: “De fato, jornalismo mal feito é praticamente a única razão pela qual a crença em óvnis persiste”.

Durante as últimas décadas, várias vezes substituí mentalmente a palavra “óvnis” por “acupuntura”, “homeopatia”, “perigo das torres de telefonia celular”, “poder dos cristais” ou “perigo das vacinas” e perguntei-me se a frase continuaria a ser correta, e o que eu poderia fazer a respeito. Foi o que me trouxe até aqui.

Como alguém que vive escrevendo, tenho uma tendência de considerar melodramática e exagerada a ideia de que palavras podem mudar vidas, que nunca sabemos realmente até onde nossos textos podem chegar ou que pessoas vão afetar. Minha intuição é de que 99,9% de todos os textos do mundo vão acabar esquecidos, apagados, virar embrulho de peixaria ou combustível de churrasqueira.

Mas aí me lembro do impacto que aquela uma linha, escrita por um canadense nos Estados Unidos, publicada em outro hemisfério, teve sobre mim e penso: que coisa. Como a mágica de Randi, é de causar espanto.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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